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Três Lagoas

"O modelo político de hoje não funciona mais"

?Os nossos políticos têm que se sentir incomodados com a sua ineficiência em tudo?, disse professor da UFMS

Professor Lourival dos Santo -
Professor Lourival dos Santo -

Na editoria Persona desta semana, o Jornal do Povo ouviu o professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Lourival dos Santo, doutor em história do Brasil, que participou das manifestações pelas “Diretas Já” e agora acompanha de perto aquela que, segundo ele, já entrou para a história do país como a terceira maior manifestação nacional realizada no Brasil. Foram 20 anos de espera, mas os jovens brasileiros, segundo ele, incomodados com o modelo individualista implantado, resolveram sair da frente dos computadores e ir para as ruas para serem ouvidos. “E eles têm muito o que dizer”. Os reflexos desse movimento, não partidário, que já soma a participação de milhares por todo o país, incluindo Três Lagoas, ainda são desconhecidos, já que o movimento surpreendeu tanto a classe política quanto cientistas sociais. “A nossa geração tem certeza de que alguma coisa do passado está acabando e que estamos começando algo que não sabemos o que é”, destacou.

Jornal do Povo: Qual avaliação o senhor faz desses protestos que começaram em São Paulo e hoje já se espalharam por, pelo menos, 11 capitais do país?
Lourival dos Santos: Em várias cidades do interior, há articulações, inclusive Três Lagoas. Então, existem dois sentimentos. O primeiro é de satisfação de ver as pessoas se desacomodando. A cultura política brasileira não é a do confronto. Por razões históricas, a nossa cultura é relacional, ou seja, para nós vale mais preservar as relações pessoais, políticas e familiares do que ir para o confronto. Por isso, o brasileiro gosta tanto do futebol. No campo, é possível ver um jogador franzino enfrentar o mais forte, mas nunca bater de frente. O drible é a nossa estratégia de sobrevivência. Isso acontece porque, historicamente, as práticas de negociação sempre prevaleceram em detrimento ao conflito. Não que não tenha havido conflitos na nossa história. Mas o comportamento geral é esse da composição. O brasileiro tem muita dificuldade de dizer ‘não’: ‘Não eu não quero, não aceito, não faço’. Isso gera no país a cultura do favor, que é avessa à do direito. A cultura do direito faz com que o Estado seja mediador de direitos divergentes. Hoje, a sociedade brasileira tem passado, desde a época da democratização – na década de 80 –, por esse processo de mudança [de uma cultura para outra]. A gente convive ainda com resquícios dessa tradição de composição. Em que você vota no político para saber quando a sua rua será asfaltada ou o que você vê com muita facilidade: alguns políticos distribuindo cartazes sobre a quantidade de emendas trazidas para a cidade. A impressão que dá é que os deputados são meros mandantes das comunidades locais para ficar passando pires no governo federal.  Institucionalizamos a troca de favor e isso não é condizente com o estado moderno. Quando você não admite o conflito, não há problema para ser resolvido. Essa é a nossa cultura.


JP: E o que está acontecendo com o Brasil, hoje?
Lourival: Na verdade, os cientistas políticos, entre os quais estou incluído, não sabem o que está acontecendo. A gente tem algumas chaves interpretativas, porque estamos em um novo patamar, através das manifestações por redes sociais. Esse é um fenômeno recentíssimo, uma vez que não tem cinco anos. Não com essa magnitude. Agora, temos uma nova estrutura de organização, cujas nossas ferramentas de interpretação não funcionam mais. Portanto, o nosso cenário é o seguinte: nós temos partidos políticos que não nos representam. Paradoxalmente, o Brasil não é uma ditadura. Os políticos são eleitos pela população. Então, nós temos que tomar muito cuidado, porque a humanidade ainda não inventou um sistema melhor do que o da democracia representativa. Quando a gente questiona os partidos políticos e afronta assembleias legislativas e o congresso nacional, você pode colocar em risco a democracia vigente. Como já aconteceu no passado, pode aparecer uma força dizendo ‘deixa que eu resolvo’.


JP: Professor, o que pode acontecer tanto de bom quanto de ruim a partir dessas manifestações?
Lourival: Essa é a questão: a gente ainda não sabe. Por sinal, existe um mito de que o brasileiro anda atrasado em relação aos europeus e coreanos, por exemplo. Trata-se daquela nossa síndrome de vira-lata, como dizia Nelson Rodrigues. Essa mania de acharmos que somos inferiores. Isso não é verdade. O Brasil está em sintonia com protestos da mesma natureza que aconteceram na Turquia, na chamada “Primavera Árabe”, e com o que tem acontecido na Europa e nos Estados Unidos. São manifestações da mesma ordem: que rejeitam os partidos políticos e os governos instituídos. A dificuldade da elite política é saber quem chamar para conversar. A última grande manifestação que tivemos no Brasil foi a do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. 

JP: Essas manifestações de hoje já superam, em quantidade, a do impeachment de Collor?
Lourival: Não. Por ora, o impeachment foi a última grande manifestação do povo brasileiro. Anterior a essa, houve o movimento das Diretas Já, em 1984, quando eu fui para a rua, na mesma idade dessa moçada de hoje, pelo voto direto. Então, você tem um espaço de 12 anos da primeira para a segunda e, depois de 20 anos, para esta manifestação. Entretanto, os atuais protestos ainda vão crescer e têm tudo para aumentar. Então, o que de bom pode acontecer? Desacomodar as nossas elites. Os nossos políticos têm que se sentir incomodados com a sua ineficiência em tudo: transporte público, saúde e educação. E, em Três Lagoas, nem de longe, é diferente dessas grandes cidades. Transporte público inexiste, os nossos postos de saúde são uma catástrofe e as nossas escolas públicas são de baixa qualidade. Nós já temos os ingredientes no Brasil inteiro. Já ouvi muitos dizerem que esses manifestantes não têm reivindicações. Eles têm sim e são bastante claras. Primeiro, querem baixar as tarifas de ônibus. O interessante  também é analisar a reação da classe política, já que ninguém está conseguindo capitalizar o prejuízo. O movimento bate em Dilma [Rousseff] e em Haddad, prefeito de São Paulo, ambos do PT. Bate em Alckmin (PSDB) e no Eduardo Paes (PMDB). São os três maiores partidos do Brasil, todos na berlinda. Essa é a parte positiva: manifestação de rua serve para oxigenar a nossa classe política. Os políticos terão que responder e eles não sabem como. 


De ruim, o que pode acontecer é desacreditar a democracia e não colocar nada no lugar. Alguns teóricos falaram, já algum tempo, que nós estamos vivendo a um momento de divisão. A nossa geração tem certeza de que alguma coisa do passado está acabando e que estamos começando algo que não sabemos o que é. Isso, a gente chama da crise, um fenômeno constante na história. Eu sou de uma geração que, nos anos 80, tinha um projeto político. O Partido dos Trabalhadores galvanizou, durante duas décadas, esse descontentamento. Agora, o próprio PT começou com essa política de fazer aliança com todo mundo. E os eleitores, grupo no qual me incluo, olharam e disseram: ‘Não é isso o que eu quero’. Volto a dizer: política se faz com conflito. Esse negócio de ‘centrão’ é uma praga mundial. Quando a gente tenta articular tudo no mesmo saco, só ganha quem está no poder. 


JP: Alguns autores que fazem comparativo entre a geração de 60 e a atual dizem que hoje a população é mais individualista. Deixamos o interesse coletivo para voltar a atenção apenas a nós mesmos. O senhor concorda com essa afirmação? 
Lourival: O grande problema é que quem faz a leitura da geração mais nova é a mais velha. Então, sempre é uma visão preconceituosa. A gente não consegue admitir que seremos superados pela nova geração, que eles tomarão o poder e nós vamos desaparecer. Isso causa um certo desespero em uma geração que achava que ia se eternizar no poder e realizar a utopia socialista ou de mercado liberal. Em geral, a nossa estratégia é desqualificar o jovem. No entanto, eles estão buscando um caminho que, graças a Deus, é diferente do nosso. A geração dos anos 60 é composta por sexagenários que ainda estão no poder. Elio Gaspari falou o seguinte: as pessoas que cheiravam gás lacrimogênio nos anos 60, hoje, cheiram buquê de vinho. Ou seja, mudou bastante a percepção do que eles tinham. Então, essa presença da juventude é extremamente importante e essa elite precisa escutar mais os jovens. 


JP: E os jovens, sempre quiseram dizer alguma coisa?
Lourival: Sim, e tem dito. Mas eles estão encontrando novas formas para isso, porque os partidos políticos fracassaram. As legendas partidárias cumpriram uma função: o Brasil de hoje é bem melhor do que há 20 anos. Não vamos ser saudosistas. Nós temos eleições livres, democracia e os políticos que estão aí foram eleitos pelo voto popular. Então, não se pode invadir a assembleia, não se pode sair destruindo tudo, porque isso foi uma conquista histórica de grupos que lutaram para que isso acontecesse. Apesar disso, o modelo se esgotou. A gente precisa de mais. Queremos ter uma saúde digna, para não precisarmos esperar de três a quatro meses para conseguir uma consulta, inclusive, em planos de saúde. Aliás, esse é um problema que temos que debater com a juventude. A solução que o liberalismo criou foi individualizar soluções. Então, se eu quero segurança, eu pago. Se eu quero saúde, também pago. Se eu quero educação, pago escola particular. Isso não está mais dando mais certo. Os planos de saúde são ruins, a educação particular é ruim e a segurança deixa a desejar. O “cada um cuide da sua vida” não está mais dando certo e os jovens estão percebendo isso. O recado foi dado. 


JP: Como o senhor avalia a participação de municípios menores e distantes do eixo Rio-São Paulo? 
Lourival: Nós temos hoje o fenômeno da globalização que possibilita isso e, no final das contas, a política é a mesma e os problemas também. Em cidades pequenas, a educação, a saúde e o transporte, lamentavelmente, não são melhores do que nos grandes centros. São tão ruins quanto. Tudo bem que você não espera duas horas dentro do ônibus para chegar ao destino, mas é obrigado a esperar esse tempo para ele aparecer. O problema é o mesmo. Tenho estudantes que não chegam no horário porque não têm ônibus. Hoje, quem manda no horário das aulas da UFMS são os ônibus, não a universidade.


JP: Esse movimento vai entrar para a história do Brasil?
Lourival: Já entrou. Estamos falando do terceiro maior movimento popular do Brasil, pelo simples fato de protestar. Culturalmente, o brasileiro vai para as ruas para o Carnaval e para comemorar os resultados de jogos de futebol. Manifestações nacionais como essa só acontecem a cada 20 anos. Os nossos políticos estão atônicos, assim como os cientistas políticos. Por essa a gente não esperava. Que bom! É bom ser provocado por situações que a gente não pode responder. Agora, os reflexos disso deverão ser analisados dentro das próximas semanas. Parece que já houve sinalização do governo para baixar as tarifas, o que deve apaziguar as coisas, mas não sabemos se colocará um fim ao movimento.