O mundo globalizado e digital impacta em todas as vertentes da sociedade. Tudo ocorre de modo cada vez mais rápido em um ambiente comandado pelo fluxo de bits and bytes. Nesse ambiente, todos os aspectos sociais se ajustam e se mantêm em sintonia com uma realidade que 20 ou 30 anos atrás seria vista como um filme de ficção científica.
Nesse mundo comandado cada vez mais por impulsos elétricos cabe destacar que existe uma área que ficou para trás. Trata-se da ciência tributária, que ainda não entrou em sintonia com o ambiente digital. Os sistemas de impostos e contribuições vigentes e a maior parte das propostas de reforma dessas estruturas arcaicas ocorrem em bases convencionais, declaratórias.
As ideias e as práticas prevalecentes é que cada pagador de imposto faça autoapuração e ofereça seus rendimentos à tributação, sendo posteriormente submetidos a auditorias amostrais para aferir a veracidade das informações. Nesse sistema, a fiscalização, via de regra, exige o acompanhamento físico das transações econômicas, uma tarefa cada dia mais difícil e onerosa de ser realizada com sucesso.
A informatização e a predominância da moeda eletrônica convergem para a adoção de uma nova e mais eficiente base de cobrança de tributos. Trata-se da movimentação financeira, base na qual todas as formas tradicionais de arrecadação estão contempladas. A renda, o patrimônio, a produção e o consumo estão contidos nas transações monetárias realizadas nos bancos.
Se a movimentação financeira é a base mais indicada para se tornar o fundamento da cobrança tributária ao redor do mundo é preciso chamar a atenção para o fato de que ela já corre o risco de estar se tornando obsoleta frente à ameaça que vem do avanço das chamadas criptmoedas.
O impacto potencial das moedas digitais desperta cada vez mais o interesse de instituições ao redor do mundo. Os bancos da Inglaterra e do Canadá, o Federal Reserve e o Departamento do Tesouro nos Estados Unidos, a Goldman Sachs, o Citibank, a Nasdaq, a Intel e a Samsung são algumas das entidades que estão investigando a tecnologia (blockchain) que está por trás dessas moedas.
As criptomoedas são meios de pagamentos criptografados que não se submetem a um controle centralizado e têm baixo custo de transação. Elas não existem fisicamente. Seu uso é crescente e não há regulação pública nas operações. É uma moeda utilizada em operações comerciais e em um mercado em expansão no meio financeiro que é a sua negociação como investimento. São quase 1,3 mil delas em circulação no mundo, com valor de mercado de US$ 203 bilhões. Quase 85% do total movimentado estão concentrados em apenas cinco: bitcoin, ethereum, bitcoin cash, ripple e litecoin.
A única forma de tributar uma moeda digital encontra-se na interface dela com a moeda sob controle dos governos. Nas operações no mercado financeiro, o fisco pode onerar o investidor quando há a troca entre as duas. Fora isso só resta bloquear a internet, algo impensável.
Eis um grande desafio para os fiscos. A movimentação financeira, que hoje é a base tributária mais viável no mundo digital, já precisa se ajustar à realidade das criptomoedas. Enquanto isso, alguns economistas e tributaristas, presos a princípios de mais de meio século atrás, se iludem achando que o sistema tradicional que tributa valor agregado, consumo e renda é páreo para a onda dos bits and bytes que está dominando até os meios de pagamentos.
* Marcos Cintra é doutor em economia pela Universidade Harvard (EUA), presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e professor titular da Fundação Getulio Vargas (FGV).