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O desfecho do impeachment: já temos duas constituições, uma escrita e uma ditada

Marcones Santos*

Marcones Santos é advogado de Direito Eleitoral  - Divulgação/jusbrasil
Marcones Santos é advogado de Direito Eleitoral - Divulgação/jusbrasil

Atualmente, tem sido difícil acompanhar a rotina de inovações constitucionais, ou melhor, de inovações inconstitucionais que são produzidas pelos três poderes diariamente. Já podemos dizer que além da preciosa Constituição Cidadã, elaborada pelo constituinte originário, temos uma nova modalidade de norma-maior, uma constituição ditada.

A literatura constitucionalista tem dois grandes modelos de constituição, a escrita e a não escrita, esta última também nominada de histórica ou costumeira. Nossos representantes incluíram no direito contemporâneo a constituição não escrita baseada na conveniência, no improviso do momento. Para não tornar este artigo uma coletânea, focarei em poucos casos que ilustram a normatividade paralela e verbalizada pelas três esferas de Poder, conjuntura atípica que ora domina a mídia e abisma os que conhecem o alfabeto constitucional.

Meses atrás os jornais televisivos estampavam, como um diamante azul, a matéria sobre os diálogos do ex-presidente Lula e a então presidente Dilma Rousseff captados em processo judicial em que o magistrado (de 1º instância) havia retirado o sigilo poucas horas antes do fechamento das pautas que seriam levadas ao ar no mais nobre horário da televisão.

Nenhuma preocupação foi demonstrada com o mais relevante cargo da República. Isso nem pelos protagonistas do diálogo de botequim e muito menos por quem lançou o teor das falas para o julgamento da arena cheia de paixões e ávida por Justiça. E o pior, as instituições foram tímidas em reprimir tamanha exposição circense e a sociedade optou pelos fogos e palmas, sem enxergar que ali a extirpação maior era a do Estado.

De passagem, cito ainda a condução coercitiva do ex-Presidente Lula, um ato que destoa da lógica de que em nosso ordenamento é assegurado o silêncio, não comportando a figura da coação para obtenção de declarações, deste período já passamos. Então, por qual motivação conduzir?

Pouco tempo depois, toma a pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) o entendimento de que a prisão de quem tiver condenação em segunda instancia não ofende a Constituição, mesmo sem o transito em julgado da decisão condenatória. Mais uma vez, a arena aplaudiu e pediu sangue dos gladiadores, novamente sem se atentar que ali estavam velando o sagrado princípio da presunção de inocência, rasgando a página da Constituição Cidadã que continha o inciso LVII do artigo 5º, uma garantia máxima constitucional.

Nos últimos dias, mais uma manifestação nos espanta, agora a do Procurador-Geral da República, para quem proibir a prisão de condenados em segunda instância pode inibir delações, apavorante asseveração que pautou matéria do site G1 na Coluna Política, de 01 de setembro. Sim, é isto que lemos. Esqueça a Constituição, esqueça os princípios, esqueça o Estado Democrático de Direito, esqueça tudo, vamos prender e viabilizar uma delação! Chegamos a este ponto, e mais uma vez sob os aplausos de muitos.

No último dia 31 de agosto deste ano, tivemos a oportunidade histórica de ver mais uma conclusão de um processo de impeachment, um doloroso processo que fez o país sangrar por sua causa, rito e desfecho. Em adiantada fase de conclusão da sessão de julgamento da então presidente Dilma, na iniciação da votação, o Senado Federal, sob a presidência do Ministro Ricardo Lewandowski, cria mais uma novidade fruto da infinita fonte do Legislador, a de fatiar a pena una prevista no artigo 52, § Único da Constituição Federal.

A redação do evocado dispositivo constitucional é clara ao assim dispor: “Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

Ao dividir a “perda do cargo” da “inabilitação para o exercício de função pública” o Senado alterou não apenas a Constituição como também o próprio dicionário da língua portuguesa e a gramática, e tudo isso ao vivo, a cores, em sinal digital, para o mundo inteiro que acompanhava este relevante momento político brasileiro.

O texto Constitucional não deixa margem para a imensidão interpretativa, mas é simples em asseverar que a condenação por crimes de responsabilidade é a de “…perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública…”. Entretanto, nos dias de hoje nada é simples, nada é claro e nada foge aos ilimitados anseios de nossos representantes.

A gramática classifica a partícula com prevista no §6º do artigo 52 da Constituição Federal como uma preposição, um conectivo de ligação que determina obrigatoriamente uma relação de subordinação vital e indissolúvel entre os dois termos: perda e inabilitação.

Contudo, nem mesmo a língua portuguesa foi óbice para Legislador-alquimista.

Inicialmente, a votação foi sintetizada em quesito único, de seguinte redação: “Cometeu a acusada, a Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União e à abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional, que lhe são imputados e deve ser condenada à perda do seu cargo, ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo oito anos?”

Depois de um acalorado debate entre os Senadores pegos de surpresa pelo pedido de destaque feito pela base da então Presidente, poucos deles, pois creio que a maioria tinha ciência prévia do pedido de separação, o Senado fez o destaque da parte final do quesito, a seguinte: “…ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo oito anos?”

A votação teve então dois quesitos. Um primeiro indagando se teria a então presidente cometido os crimes de responsabilidade que lhe eram imputados e deveria então ser condenada à perda do seu cargo. Um segundo indagando se em razão da condenação pela prática de crimes de responsabilidade ficaria ela inabilitada para o exercício de função pública pelo prazo legal de oito anos.

“Um verdadeiro absurdo.” “Uma bizarrice.” “Rasgou-se a Constituição.” Estes, alguns dos comentários feitos pelos mais variados e renomados operadores do direito sobre o destaque feito no Senado federal com ares de acordão.

Ao dilacerar a sanção una o Senado usou a espada de forma errônea, fez corte onde não poderia, atingiu parte vital da Carta Magna. Em verdade ditou-se um novo dispositivo constitucional, um novo texto verbalizado no momento da sessão, diferente do escrito na nossa rígida e formal Carta Republicana.

Com esteio no novo dispositivo constitucional inovado na Sessão em questão alcançou-se o surpreendente resultado de se reconhecer a prática do crime de responsabilidade, com aplicação da consequente perda do cargo, por 61 votos a favor do impeachment e 20 contra. Mas já na segunda votação, sobre a inabilitação para o exercício de função pública, o resultado da votação foi de 42 votos a favor da inabilitação e 36 contra, com três abstenções.

A conclusão do Senado foi a de fixar resolução decretando a perda do cargo pela então presidente Dilma Rousseff, mas mantê-la habilitada para o pleno exercício de funções públicas. Em suma, o Senado decretou a perda do cargo pela prática do crime de responsabilidade, mas inovou ao dizer que tal condenação não implica na inabilitação para o exercício de função pública, mesmo trazendo o texto constitucional a partícula com na redação do § Único do artigo 52.

Temos, agora um novo texto constitucional, prevendo que “Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, talvez com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

Penso que a segunda votação seja, em verdade, um ato inexistente, por entender que a Constituição estabelece que a perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública são consequências unas e umbilicais do reconhecimento da prática de crime de responsabilidade, não sendo possível a inabilitação sem a perda do cargo e a perda do cargo sem a inabilitação estipulada na Constituição. Desta forma, uma segunda votação selecionando apenas uma parte da sanção consequente do reconhecimento da prática do crime de responsabilidade é mero ato simbólico incapaz de afetar o taxativo texto escrito pelo legislador originário.

Enfim, o ato final praticado no fechar das cortinas do processo de impeachment foi uma ode em louvor aos derradeiros momentos vividos em nosso país, uma fragilização da Constituição na direção contrária de tudo que se pensou e se construiu no curso da história, destacadamente no pós-segunda guerra mundial, em que os Estados foram edificados sob a égide do fortalecimento constitucional.

Como não poderia deixar de ser, a opção do Senado pelo fatiamento da sanção una gerou um novo capítulo da epopeia do impeachment, agora com retorno dos holofotes para o STF, que já recebeu até este momento dez ações atacando a votação principal e a segunda votação que apartou a inabilitação para o exercício de funções públicas, ações estas distribuídas entre os ministros Rosa Weber, Teori Zavascki e Edson Fachin, escolhidos por sorteio.

O Ministro Teori Zavascki relata também o mandado de segurança impetrado pela então presidente Dilma, que pleiteia a concessão de ordem para uma nova votação do impeachment, com a retirada dos artigos da Lei do Impeachment, que define os crimes de responsabilidade imputados na denúncia e relatório final do Senado. Em sede de liminar pede-se no MS a suspensão dos efeitos da posse do hoje presidente Michel Temer, que assim retomaria o status de Vice-presidente. Resta-nos aguardar a posição da Suprema Corte. Minhas apostas são de que a Corte não conceda a segurança anulando a primeira votação, pedido feito pela então presidente Dilma, mas acolha o pedido de decretação de nulidade do fatiamento e anule a segunda votação e considere a inabilitação uma consequência indissociável do reconhecimento da prática de crime de responsabilidade, assim como é a perda do cargo.

*Marcones Santos é advogado de Direito Eleitoral e sócio do escritório Lopes, Leite & Santos Advogados Associados.