Veículos de Comunicação

TRAGÉDIA INVESTIGADA

Declarações desencontradas marcam investigação sobre ataque de onça no Pantanal

Autoridades divergem sobre presença de ceva e responsabilidade do animal capturado; felino permanece sob exames no CRAS de Campo Grande

Felino permanece sob exames no CRAS de Campo Grande - Foto: Divulgação/Governo de MS
Felino permanece sob exames no CRAS de Campo Grande - Foto: Divulgação/Governo de MS

As investigações sobre o ataque que matou o caseiro Jorge Ávalo, de 60 anos, no Pantanal de Mato Grosso do Sul, seguem cercadas de incertezas — e, agora, também de declarações desencontradas entre autoridades e especialistas que acompanham o caso.

As coletivas de imprensa realizadas pelo governo estadual na quarta-feira (23) e hoje (24) apresentaram informações distintas sobre pontos-chave do episódio, como a possível presença de ceva no local do ataque e a identificação do animal como responsável pela morte.

Ceva: de “confirmação” a “não sabemos”

Um dos principais pontos de divergência está relacionado à chamada “ceva”, prática de alimentar os animais silvestres com o objetivo de atraí-los — em especial, onças-pintadas.

A técnica, embora comum em algumas regiões turísticas e em acampamentos de pesca, é considerada crime ambiental tanto pela legislação estadual quanto federal.

Na coletiva de quarta-feira, autoridades da Polícia Militar Ambiental (PMA) e representantes do governo afirmaram, de forma categórica, que havia ceva no local do ataque, o que teria contribuído para o comportamento atípico da onça e a proximidade com humanos.

Já hoje, o professor e pesquisador do Reprocon/UFMS, Gediendson Araújo, que integra a equipe técnica da investigação, adotou tom mais cauteloso. Segundo ele, não há confirmação de que havia ceva na propriedade onde Jorge foi atacado.

“Não sabemos nada em relação à ceva. É uma prática que acontece no Pantanal, a gente vê vários vídeos. […] Mas lá nós não sabemos.”, afirmou.

Onça responsável? Versões também divergem

Outro ponto sensível da investigação é a identificação do animal capturado como o autor do ataque. Enquanto a primeira coletiva indicava que o comportamento da onça suspeita e sua frequência na área eram indícios suficientes para considerá-la a responsável, a entrevista desta quarta-feira recuou nesse posicionamento.

O secretário-executivo de Meio Ambiente do Estado, Artur Falcette, afirmou que não é possível afirmar com certeza que a onça capturada foi a responsável pelo ataque apenas com base em exames de fezes ou imagens registradas por armadilhas fotográficas.

“É importante lembrar que, em casos como esse, outros animais podem ter se alimentado do corpo da vítima após a morte. Estamos lidando com uma área aberta, de mata, e qualquer vestígio precisa ser analisado com muito critério”, explicou o secretário.

Exames, cautela e a espera por respostas

O animal capturado, um macho de 94 quilos, está sob avaliação no Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), em Campo Grande. Segundo os técnicos, o felino está abaixo do peso ideal para a espécie — o que pode indicar dificuldades para caçar ou até problemas de saúde que influenciem no comportamento.

De acordo com a coordenadora do CRAS, Aline Duarte, responsável pelo acompanhamento do animal, afirmou que uma bateria de exames está em andamento, incluindo raio-x, ultrassonografia, coleta de sangue e de fezes.

Onça passando por primeiros cuidados no Cras – Foto: Divulgação/Governo de MS

O objetivo é verificar tanto o estado clínico do animal quanto a possibilidade de encontrar vestígios biológicos que o vinculem ao ataque — como restos da vítima em seu trato digestivo. No entanto, especialistas foram claros ao dizer que a presença desses vestígios não configura, por si só, uma prova conclusiva.

Monitoramento e medidas preventivas

Câmeras de monitoramento devem ser instaladas na região para verificar se outras onças frequentam o local e se há algum tipo de desequilíbrio ambiental que possa justificar o comportamento de aproximação à área habitada.

A presença da onça capturada no mesmo ponto onde o ataque ocorreu, inclusive após grande movimentação humana no local, chamou atenção da equipe técnica. Segundo os pesquisadores, esse comportamento pode indicar perda do instinto de evitar o contato com pessoas, algo incomum entre grandes felinos na natureza.

No entanto, a equipe pondera que o retorno pode ter sido motivado por uma série de fatores ainda não totalmente compreendidos.

Risco de caça ilegal e reação da população

Outro alerta feito durante a coletiva foi sobre a disseminação de informações distorcidas ou precipitadas, que podem estimular retaliações à fauna local. Representantes da Polícia Militar Ambiental (PMA) afirmaram ter recebido relatos de tentativas de caça à onça-pintada por parte de pessoas externas à comunidade tradicional da região.

“Não são produtores rurais ou moradores locais, mas sim caçadores oportunistas que se aproveitam da comoção para justificar ações criminosas”, apontou o secretário-executivo Artur Falcette.

A PMA reforçou que qualquer tentativa de caça será tratada como crime ambiental e que a fiscalização foi ampliada.

Um caso inédito no Brasil

A captura da onça-pintada após o ataque fatal também marca um fato inédito no país: é a primeira vez que um felino dessa espécie é recolhido vivo no Brasil após envolvimento em um caso de morte humana. A singularidade do episódio tem chamado atenção de pesquisadores e instituições ambientais em todo o país.

Segundo o professor Gediendson Araújo, o caso deve abrir precedentes para novos estudos científicos sobre o comportamento de grandes felinos em áreas de interface com atividades humanas.

Sem respostas definitivas

Até o momento, nenhuma linha da investigação foi descartada, e as equipes técnicas e policiais trabalham de forma paralela para reunir dados que ajudem a esclarecer o episódio. O inquérito da Polícia Civil segue em andamento, e a expectativa é de que novas análises sejam concluídas nos próximos dias.

Enquanto isso, o felino permanece sob cuidados no CRAS e será avaliado não apenas do ponto de vista clínico, mas também comportamental. Somente após a conclusão de todos os laudos e exames é que será decidido se o animal poderá ser reintegrado à natureza ou se deverá ser mantido em cativeiro por questões de segurança.