Opinião
A Constituição inconveniente
A urgência na licitação e execução de obras públicas envolvendo a preparação para a Copa Mundial de Futebol de 2012 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 motivou a edição de um marco regulatório específico para a contratação de tais obras. A Lei 12.462 de 5 de agosto de 2011 abriu exceções na lei geral de licitações, a Lei 8.666 de 21 de junho de 1993. Estabeleceu-se um debate público sobre aspectos nos quais essa nova regulamentação teria flexibilizado de modo indevido as exigências constitucionais de transparência (e o controle que tal transparência exige) sobre os atos da administração pública.
Dois aspectos contudo parecem ter merecido menor destaque nesse debate, e eles são de grande importância: a igualdade constitucional e o procedimento mediante o qual as leis são editadas, isso é, o que se exige, constitucionalmente, do processo legislativo em nossa democracia.
É possível argumentar que boa parte das alterações promovidas nesse regime diferenciado de contratações corrija erros na forma de licitação estabelecida na lei geral. Contudo, se são feitas alterações em uma lei geral apenas para determinados eventos específicos, é necessário perguntar o que justifica a quebra de igualdade para com as licitações que serão feitas nas demais obras públicas. A chamada urgência para tais eventos desportivos é posta em xeque quando se observa que a escolha dos países e cidades que os sediam é feita, pelas respectivas entidades organizadoras, com antecedência de cerca de quatro anos. A urgência que se invoca quanto a elas não se compara, no sentido público da expressão, com as urgências e emergências com as quais cada cidadão brasileiro tem sido historicamente flagelado, dada as omissões conhecidas nas políticas públicas voltadas à saúde e educação.
De outra parte, o procedimento legislativo pelo qual foi editado esse regime diferenciado de contratação é também criticável sob a ótica das exigências constitucionais. As normas relativas a ele são produto de emendas feitas no curso dos debates no Parlamento quanto à Medida Provisória 527 de 18 de março de 2011. O objeto dessa Medida Provisória era a criação da Secretaria da Aviação Civil e providências correlatas a essa criação. Nada mais. Porém, durante a tramitação foi enxertada em seu teor toda a regulamentação de um regime diferenciado de contratações de obras e serviços pela administração pública. Foi quebrada a pertinência temática entre a Medida Provisória apresentada e a sua conversão em lei.
Não se trata de um mero detalhe técnico. Princípios que normatizam o processo legislativo são parte do que se exige, em uma democracia, para a preservação do debate efetivamente público em torno da edição de leis. E, no caso de medidas provisórias, sendo elas normas excepcionais (porque vigoram de modo imediato, antes mesmo da deliberação do Parlamento), observar esses princípios é ainda mais crucial. Esse ponto, aliás, é objeto de uma ação de inconstitucionalidade que será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal.
A conclusão a que se chega é que, uma vez mais, sob o manto de pressões políticas e econômicas, foram violadas a isonomia e o devido processo legislativo. Porém, nenhuma forma de urgência pode justificar que os princípios constitucionais sejam tratados como inconveniências. Garantias constitucionais não substituem políticas públicas e o debate em torno delas. Porém devem, sobretudo, impor limites às deliberações que surjam desses debates.
Paulo Henrique Blair de Oliveira é professor da Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília, pesquisador do grupo Percursos, Fragmentos, Narrativas: História do Direito e do Constitucionalismo (UnB/Universidade Federal de Santa Catarina) e do grupo Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB).