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A democracia agredida

 Em 1945 participei da campanha pela redemocratização do País e votei na eleição de 2 de dezembro para presidente da República e para a constituinte que elaboraria a Constituição de 1946. Encerrava-se o longo e triste ciclo do Estado Novo, durante o qual houve de tudo, a começar pela destruição dos valores democráticos e pelo endeusamento do ditador, à semelhança do que se fizera nos países totalitários da Europa. E continuei a participar de campanhas e eleições até ser nomeado para o Ministério da Justiça e depois para o STF. Sempre entendi que o ministro da Justiça não deveria ser parte da campanha, mais do que qualquer outro não podendo ser, ao mesmo tempo, autoridade e ator, pois a ele competiria a adoção de medidas que se fizessem necessárias no período eleitoral.

Digo isto para salientar que em mais de 40 anos fui testemunha de muito "excesso" e "abuso", mas nunca tinha visto o que passei a ver e continuo a assistir dia a dia se agravando. E isto é tanto mais significativo quando em quase todos os sentidos o país tem progredido e em muitos deles o progresso chega a ser notável; no que tange à instrumentalidade eleitoral, por exemplo, é quase inacreditável o aperfeiçoamento, mas no momento em que o chefe do Estado se despe da faixa presidencial e assume a chefia real e formal da campanha de um candidato e em cerimônia oficial insulta o candidato, por sinal, da oposição, chamando-o de mentiroso, ele se despe da magistratura presidencial, e ingressa no mundo da ilicitude, que, para um presidente, é a mais grave das infrações.
Isto é porta aberta para a consumação de todas as truculências verbais e físicas. É preciso não esquecer que a violência é doença contagiosa e com a publicidade que o governo dispõe ele pode incendiar o País. O presidente quer ganhar a eleição a qualquer custo e pode ganhar, mas a sua eleita pode não governar. Já vi coisa parecida e não terminou bem. O presidente alinhou o Brasil na maçaroca do coronel Chávez.
A partir de agora alguém pode sair às ruas portando cartaz, seja do que e de quem for, sem correr o risco de ser agredido pela guarda de choque do presidente. Foi assim na Itália fascista e na Alemanha nazista. O que aconteceu instantaneamente ganhou uma versão cor de rosa na publicidade do governo. O agredido de ontem não foi o cidadão apontado de "mentiroso" pelo presidente, foi cada um de nós, foram as instituições democráticas. Para começar um incêndio basta um fósforo; extingui-lo pode custar o incalculável.
Não preciso dizer que estou profundamente impressionado com o rumo que o presidente está dando à sua incursão empreendida na orla da horda, ele fez um pacto com a fortuna, do qual o imprevisto é sempre possível.

Paulo Brossard foi senador, ministro da Justiça, ministro do STF e presidente do TSE