Veículos de Comunicação

Opinião

A DOR QUE DÓI MAIS

Imaginemos que nos fosse permitido saber do dia da morte de um filho nosso e que, por mistério indecifrável, nós, pais, tivéssemos o Fado de sobrevivermos ao infausto evento. Esse martírio de uma morte anunciada e sabida, que tamanho teria? Porque, mesmo sem essas faculdades da antevisão, a dor de pais e de mães sobreviventes à morte de um filho é de tal intensidade que melhor se contém no silêncio de quem imagina, por mero consolo, reencontrar o ente querido em outra dimensão. A experiência diária de padecer tão grande perda é uma dor que dói intensa e incuravelmente e que não pode, ao que diz a retórica dos não submetidos ao trauma, “ser mitigada pela medicina, a psicologia, a religião e a solidariedade”. Quem sofre essa dor não consegue diminuí-la, apenas com ela aprende a conviver, sublimando saudades.

Esta reflexão vem a propósito do debate instalado sobre o reconhecimento do aborto permitido à gestante de feto anencéfalo. Do conhecimento geral, as opiniões sobre o tema são opostas: uma, a pugnar pela condenação moral do aborto em tais situações e pela conseqüente criminalização de sua prática; outra, consentânea com os avanços científicos na Medicina e secundada por preocupações no âmbito dos cuidados com a Saúde, a ver em tal permissão a defesa da mulher, do ponto de físico e psíquico, do padecimento de gerar um ser sem nenhuma possibilidade de partilhar a vida tal e qual ela se oferece a todo nós; ambas as correntes, a esgrimirem ponderações de natureza ética, sócio-econômica e legal, apreciadas no STF.

 Do que se sabe com rigor científico, o feto anencéfalo é desprovido de atividade cerebral. Esse feto, um ser cuja vida é inviável já nos momentos imediatos à sua concepção, se cumprido o trânsito de sua gestação e então trazido à luz do Mundo, além da privação do gozo da vida, será submetido à provações sem conta, ainda que disso não venha a ter ciência pela sua infeliz condição, residindo aí, nesse existir sem viver, a grande crueldade para si, seus pais, familiares e a própria sociedade.

A anencefalia equivale à morte cerebral, a mesma que, segundo a Lei dos Transplantes, clinicamente diagnosticada, propicia o momento oportuno da doação de órgão do vitimado a quem desse órgão necessite para manter-se em estado aceitável de saúde ou, em situação de iminente risco de vida, superar, com o transplante, grave e letal comprometimento em seu organismo. Essa lei, evidentemente, ressoa os novos tempos de avanços tecnológicos na Medicina, mercê de progressos científicos que prolongam a existência humana, avanços esses que, afinados com o conceito de Felicidade, acabaram chancelados moral, ética e legalmente no Brasil e alhures, ainda que contestados em nichos de inspiração religiosa ou filosófica.

Contrariamente ou não ao pleito levado à nossa Corte Suprema e voltando à reflexão acima, lembremos que os eletro encefalogramas da anencefalia e da morte cerebral são graficamente iguais, isto é, não indicam a existência de atividade cerebral. São tais peças, duas páginas em branco a indicarem, na ausência daqueles riscos nervosos que aguçam nossa curiosidade, a ausência da Vida na manifestação que tanto prezamos, pois que, se é da Lei Natural caminharmos para a desordem da Morte, também é dessa Lei o nascermos para viver. Nessa ponderação, a ausência de atividade cerebral no feto anencéfalo traz à mãe o sofrimento inimaginável de prantear duas mortes, uma que dói muito, a havida em um útero transformado em esquife, e outra que dói mais ainda, a anunciada e sabida por um existir vegetativo e breve.

Hélio Silva é economista e advogado