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A faxina inadiável

Em sua simplicidade e clareza, o princípio é definitivo e indiscutível: ser ético, honesto e correto é o mínimo que os homens que pleiteiam e exercem cargos públicos devem oferecer à sociedade. Entretanto, já virou tradição na política (e lamentavelmente em tantos outros campos) a persistência de uma realidade que contradiz frontalmente tal princípio e constitui um caldo de cultura por excelência para o vicejar de abusos de toda ordem, desde os costumeiros jeitinhos à brasileira no dia a dia até os enormes escândalos de corrupção. Com raras exceções, um mergulho em nossos cinco séculos de história revela a quase inacreditável tolerância da sociedade com esse estado de coisas e a quase irresistível vocação de boa parte da população para se aproveitar dessa leniência, quando surge uma oportunidade.
Um verdadeiro círculo vicioso, alimentado por desculpas que vão desde condições sociais desfavoráveis até a malemolência típica dos trópicos, criou o clima propício para a prevalência de interesses pessoais, corporativos ou de grupos, maculando a democracia e aprofundando as desigualdades. Um cenário que parece confirmar a profecia do escritor e estadista anglo-irlandês Edmund Burke (1729-97): para que o mal triunfe, basta que os bons cruzem os braços.
Tomando a frase pelo avesso, para derrotar o mal, basta que os bons descruzem os braços. Foi exatamente isso o que fez o 1,6 milhão de brasileiros que assinaram ou apoiaram pela internet o Projeto Ficha Limpa, pedindo a proibição das candidaturas dos fichas sujas. Numa rara demonstração de sensibilidade à voz das ruas, os parlamentares aprovaram a lei, sancionada sem vetos pelo presidente Lula em 4 de junho. Abrandada durante a tramitação de pouco mais de dois anos no Congresso, a proposta foi objeto de polêmica provocada por questionamentos sobre sua entrada em vigor e pela alteração de um tempo verbal, fato que, na visão de alguns, impediria que fosse aplicada já nas eleições deste ano e, quem sabe — como certamente estão torcendo os fichas sujas —, até poderia remetê-la para a cova das famosas leis que não pegam.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já resolveu, em sua alçada, que a lei vale para este ano e que deverão ser barradas as candidaturas de políticos julgados por colegiados. A prevalecer o espírito da lei — sempre mais poderoso do que a letra da lei —, em caso de novos recursos os magistrados confirmarão as duas louváveis decisões, respeitando a indignação da sociedade com a impunidade em geral e, em especial, com a absurda distorção da imunidade parlamentar, que passou também a proteger criminosos notórios.
Ao autorizar a primeira grande faxina nos corredores do poder, os juízes do TSE assumem o papel histórico de ter dado o pontapé inicial para a tão ansiada (mas sempre adiada) reforma política. Será um alento para os cidadãos que, finalmente, saíram da letargia e se mobilizaram a favor da ética na política, objetivando consolidar a democracia e fortalecer a cidadania. Esse saneamento assegurará uma das condições básicas para resgatar o país das garras da corrupção e da impunidade, e colocá-lo na rota do crescimento sustentado da economia e da redução de seus graves problemas sociais.
Se é dever do eleito resistir às tentações do poder e se à Justiça cabe repudiar e punir os corruptos e corruptores, o eleitor também tem responsabilidade na valorização da ética na política. Como? Exercendo o voto consciente, rejeitando candidatos que invocam a palavra ética apenas contra os adversários e raramente a empregam para definir seu compromisso com o próprio mandato.
Mas, não nos iludamos, a depuração do ambiente político está apenas no início. A infecção está tão entranhada no tecido social que levará um longo tempo para que o vírus da impunidade seja eliminado da vida nacional. Mas o prazo poderá ser encurtado se mais cidadãos seguirem o exemplo do 1,6 milhão de brasileiros que impulsionaram a lei contra os fichas sujas, e participarem ativamente da faxina da política, barrando não apenas os corruptos, mas também os demagogos e populistas, os despreparados para a administração pública, os descompromissados com a solução dos graves (e velhos) problemas nacionais, os defensores de privilégios corporativistas em detrimento do interesse de toda a população. Enfim, como se nota, elevar o Brasil ao patamar de país moderno e verdadeiramente democrático exige o empenho de todos. Mas com uma vantagem: o tiro de partida já foi dado.

Ruy Martins Altenfelder é  presidente do Conselho Diretor do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee)