Diante dos fatos atuais, estão em voga discussões e notícias relacionadas às Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) e a apuração de eventuais ilícitos. Outros acontecimentos diários, entretanto, não podem ficar distantes do conhecimento de todos, ou mesmo repisados.
Desde o ano de 2001, com o advento da Lei Complementar n. 105, o Estado, por intermédio da Receita Federal, vem praticando uma ilicitude legalizada que tem atingindo a quase todos os cidadãos brasileiros.
Estamos a falar de um clarividente desrespeito ao direito fundamental do cidadão, garantido em nossa Constituição Federal de 1988, quanto ao sigilo bancário.
A Receita Federal, a partir da Lei Complementar n. 105/2001, tem causado sérios transtornos às pessoas físicas e jurídicas deste país ao quebrar indevidamente o sigilo bancário e, numa presunção de que todos são sonegadores – aqui outro equívoco que vem se generalizando -, exige explicações detalhadas de toda a movimentação financeira de anos atrás, o que acaba sendo até mesmo impossível, principalmente, para pessoas físicas, já que não possuem contabilidade.
A verdade, porém, é que a Constituição Federal em seu art. 5º, quando protege a intimidade e a vida privada (inciso X) e o sigilo de dados (inciso XII), acaba por garantir o sigilo da movimentação bancária.
Como conseqüência desta proteção, impossível se torna qualquer conduta, particular ou estatal, que promova o acesso à movimentação bancária das pessoas físicas e jurídicas. Equivale dizer, ninguém, inclusive o Estado, segundo a Constituição Federal, pode ter acesso (ou seja, quebrar o sigilo) à movimentação bancária, salvo o próprio titular desta. Aliás, é preciso deixar claro que o fato de, por exemplo, o Estado quebrar sigilo bancário e não divulgar a terceiros, já configura a violação ao direito fundamental previsto no art. 5º da Constituição Federal.
Surge, então, uma indagação: o direito ao sigilo bancário é absoluto, a ponto de possibilitar eventual emprego de um direito fundamental para esconder prova da prática de ilícitos?
A resposta há de ser única. Não, o sigilo bancário é relativo, razão pela qual não possui a condição de esconder eventuais práticas de delitos.
O fato, no entanto, a ser esclarecido e ressaltado com toda intensidade possível é que, segundo a Constituição Federal e os estudos mais avançados na área do Direito, um direito fundamental pode ser relativizado (ou restringido), por uma lei, quando a própria Constituição permitir, ou mediante decisão judicial (reserva de jurisdição), que retirará o caráter absoluto daquele direito pela aplicação do princípio da razoabilidade (ou proporcionalidade).
Deste modo, não é possível ao Legislativo, muito menos ao Poder Executivo, restringir a aplicação de um direito fundamental, salvo quando a Constituição expressamente possibilitar o exercício desta função. No caso do sigilo bancário, a Constituição Federal não permite aos Poderes Legislativo e Executivo restringir sua extensão relativizando-o, como tem ocorrido diariamente na prática. Se existe alguma ilicitude, caberá ao Estado, mediante provas e alegações fundamentadas, pedir ao Judiciário que autorize o acesso a determinada movimentação bancária. Portanto, ao juiz – imparcial – caberá decidir se existem razões suficientes para a relativização do direito fundamental.
Em tais condições, diante da ausência de permanentes discussões sobre a matéria, bem como o triste afrontamento à Constituição Federal, que vem prejudicando a todas as pessoas, é preciso lembrar que prática corriqueira da Receita Federal em exigir extratos bancários para fins de fiscalização é totalmente inconstitucional, que demonstra, em certos momentos, uma verdadeira ditadura legal, o que não se coaduna com um Estado Democrático de Direito. Alias, há de se lembrar o Estado, em especial, a Receita Federal de conhecida frase do saudoso Rui Barbosa de que "Fora do Direito, não há salvação!".
Fábio Pallaretti Calcini é advogado no escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia