Raramente leio as famigeradas correntes que costumam chegar por e-mail. Porém, recebi uma, vinda de um amigo também cético do “correntismo eletrônico”, para a qual decidi dar uma chance. A mensagem, com o título de “Carta escrita no ano de 2070”, é a tradução de um texto em espanhol originalmente publicado em 2002. Em suma, trata-se da carta de um pai de meia idade narrando o cotidiano dramático de um mundo sem água e o contrastando, com certo arrependimento, a uma infância em que a preservação do precioso líquido e do ambiente não eram importantes. Seu conteúdo é muito oportuno neste momento em que a sustentabilidade é um dos temas mais recorrentes em todo o mundo.
A água foi uma das últimas fronteiras a serem cruzadas pelos ambientalistas, estudiosos e políticos. Mesmo após a inclusão do meio ambiente na agenda internacional, de maneira incipiente nos anos 1970 e com particular visibilidade a partir da Cúpula da Terra das Nações Unidas (a Rio-92), ainda levou algum tempo para que se percebesse que a água encontra-se de modo íntimo nesse quadro complexo. Aprendemos, quando crianças, que a água é o exemplo clássico de “recurso renovável”, possuindo um ciclo natural e perpétuo, enquanto o petróleo seria seu contraponto, o “recurso não-renovável”. Com relação à primeira, não haveria o que temer. O petróleo, por outro lado, seria o grande problema energético e político global. A (potencial) escassez deste, bem como sua concentração em alguns lugares privilegiados do Planeta, teria sido responsável pela dinâmica dos conflitos internacionais das últimas décadas.
A chamada “geopolítica do petróleo”, que abriu de modo voraz este século XXI, já foi apresentada como o maior algoz de uma paz mundial vindoura. Ela encobre, no entanto, um cenário ainda mais delicado, assentado no que podemos chamar de “geopolítica da água”. Afinal de contas, esse líquido insípido, inodoro e incolor, tão ligado ao desenvolvimento das espécies e ao progresso humano, pode acabar – e está acabando. Essa escassez, acompanhada por um grave problema de gestão de águas, já tem causado problemas para a agricultura e a indústria, principalmente nas regiões áridas. O desequilíbrio entre o uso da água e os recursos hídricos é crítico em diversos locais do globo, especialmente em partes dos Estados Unidos, Norte da África, Oriente Médio e Ásia Central. Água potável é raridade em diversas comunidades humanas e sua ausência é responsável por indicadores sociais negativos, como alta mortalidade infantil e morte por contaminação de fontes hídricas. Somada ao aquecimento global, a questão da água detém um potencial gerador de conflitos, que, embora negligenciado por muitos, deve constar na agenda de cada um dos Estados e organizações internacionais.
Devemos atentar para problemas domésticos e internacionais que advêm da escassez de água e de sua má gestão. Internamente, a distribuição desigual de recursos hídricos pode acirrar ou mesmo criar divergências econômicas, políticas e sociais dentro de um Estado. A desertificação de determinadas áreas, bem como o número crescente de desastres naturais decorrentes da mudança do ciclo da água, tem o potencial de gerar transformações demográficas. Dentre as consequências estão o aumento da pobreza, a “favelização” de centros urbanos economicamente atraentes e a intensificação de conflitos sociais em diversos pontos do Planeta. Além disso, na ausência de uma solução que progressivamente amenize o problema da água, medidas proporcionalmente drásticas para corrigir o rumo de seu uso serão necessárias no momento em que a situação fuja do controle dos governos. Como ficará a democracia num quadro em que nossos políticos, frente a conflitos internos de proporções significativas, terão de tomar medidas draconianas de controle de recursos hídricos para que o Estado não entre em colapso?
Conflitos internacionais também podem emergir num cenário de escassez de água potável. Da mesma maneira que a questão energética (gás e petróleo) é a principal fonte de violência e tensões em regiões como o Oriente Médio e o Cáucaso, a busca por água pode transformar o cenário dos conflitos globais. Guerras por água já são aventadas por diversos políticos e acadêmicos, na construção de cenários para este século nascente. Um dado importante é que nada menos que 260 bacias hidrográficas são compartilhadas por dois ou mais países. Em relatório da Organização das Nações Unidas de poucos anos atrás, prevê-se que 3 bilhões de pessoas viverão em países passando por conflitos por falta de água. O que pensar do Brasil, com em torno de 12% de toda a água doce do planeta, num mundo em que a questão hídrica – e não o petróleo, a religião, ou o nacionalismo – será a principal fonte de conflitos, domésticos e internacionais?
O embaixador Rubens Ricupero sustentou, em recente intervenção, que o meio ambiente é nossa paranóia de hoje, como a medo de uma guerra atômica povoou o imaginário dos filhos da Guerra Fria. Sua avaliação é tão precisa quanto assustadora. Ao contrário das bombas nucleares, que podem ser contidas e detidas, uma catástrofe do meio ambiente é inevitável, se a solução não for buscada agora. A boa vontade dos organismos internacionais e da sociedade civil organizada não tem bastado, uma vez que se deparam com Estados desinteressados e sempre devastadores na busca por crescimento econômico, desenvolvimento ou segurança. Talvez, se falarmos na língua destes, insistindo nos perigos da “geopolítica da água”, consigamos algum tipo de resposta. Que a recorrente discussão da sustentabilidade nos conduza a uma reflexão séria em direção a um mundo melhor.
Guilherme Stolle Paixão e Casarões, professor das Faculdades Rio Branco, é mestre em ciências Políticas pela USP, especializado nas relações entre os países da União Européia e organismos internacionais.
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