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Arikã, Adeus Gilmar Apu-cará

Corria o mês de janeiro do ano de 1998. Pelos campos e serrados da orla barranqueira do rio Paraná, no Mato Grosso do Sul, esse era o tempo e a história de Gilmar Eliandes Apu-cará.
Nessa época ele tinha cerca de 10 anos de idade quando acompanhei o antropólogo Prof. Manuel Ferreira Lima Filho, da Universidade Católica de Goiás, que visitou sua família e os patrícios Ofaié Xavante, da aldeia Enodi, localizada no km 10 da rodovia MS-040, no município de Brasilândia.
O trabalho realizado era um importante levantamento sobre os impactos causados pelo enchimento do lago da hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta (ex-Porto primavera). Elaborava na ocasião um Parecer sobre o EIA-RIMA de autoria do Consórcio Themag-Engea-Umah, sob a responsabilidade da Companhia Energética de São Paulo-CESP, em favor das populações ribeirinhas que viviam na margem direita do rio Paraná, entre elas, os Ofaié.
E o jovem estava lá, junto às demais crianças Ofaié e Kaiowá que convivem na aldeia, com seus cocares multicoloridos e flechas emplumadas correndo entre as matas e as paredes das casas de tijolos construídas pela concessionária elétrica paulista para mitigar a dor e o desterro de outrora daquele povo caçador e coletor ressurgido e que ainda hoje teima em falar uma língua que experimenta os últimos estertores da sobrevivência.
O menino, filho de Vá-verá, Roni Eliandes, Ñhandeva, sobrinho de Marçal de Souza, trazia na bagagem genótipa paterna, as raízes de um grande líder. Do lado materno, de Châ-tâ, Marilda de Souza, Ofaié, herdou a profissão pedagogia. E olha lá o nosso Apu-cará, estudando para ser professor, de olho na universidade. 
Seu colega de aldeia, o jovem Silvano Ofaié, e os professores Giovani da Silva e Macedônia Franco, do Curso Normal Médio Indígena – Projeto Povos do Pantanal, da Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul podem dizer melhor, sobre o futuro deste menino, sua inteligência e perspicácia, sempre atento para os problemas e os desafios de uma escola cada vez menos com o rosto e conteúdo indígena.
E logo, logo, lá estava ele, professor da aldeia que a tornou sua, quando, ainda pequeno chegou com seus pais, vindo do sul do Estado. A Escola Municipal Ofaié E-Iniecheki, agora, é um campo florido, onde a semente é lançada farta para a alegria do mestre e a sede de saber daquele povo gentil.
Só que algo saiu errado com sua saúde. Nem sua família, a mulher e os dois filhos pequenos sabem explicar como um jovem de apenas 19 anos de idade, morre subitamente tendo como causa mortis insuficiência respiratória aguda devido a derrame pleural, caquexia e tuberculose pulmonar como consta na certidão de óbito.
Nós, pesquisadores e instituições, muitas vezes nos empolgamos tanto com a mente brilhante de nossos educandos que, de quando em vez, nos olvidamos de que seus corpos são frágeis e o esforço é tamanho para não sucumbir e sobrepujar a imposição de dietas, fé e costumes que há séculos lhes solapa a sorte…
Depois de ter sido levado às pressas para a Sociedade Beneficente do Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, em Três Lagoas, veio a falecer no dia 11 de janeiro de 2010 o jovem professor, cuja vida foi inexplicavelmente arrancada do coração do povo Ofaié, para o espanto de todos.
A aldeia Ofaié ainda está de luto pela perda de seu menino. Seus pais, Roni e Marilda tateiam pelas paredes, pelo escuro, buscando a luz de uma explicação para essa perda. Ao lado da jovem viúva e seus filhos, choram. A educação indígena no Estado de Mato Grosso do Sul também está de luto.
Arikã, Apu-cará.  Adeus, Gilmar Eliandes.

Carlos Alberto dos Santos Dutra é indigenista e professor