Certo dia, um homem de chapelão panamá cercou um quinhão de terra e decidiu que aquela seria sua fazenda. Seu desejo era criar gado, por se tratar de um animal pasmo e pacífico, de fácil manejo e capaz de lhe gerar as mais diversas fontes de renda: carne, leite, couro, força motriz e tantas mais. Para cuidar de suas reses, contratou uma dúzia de funcionários a preços módicos. Convocou os serviços de alguns papagaios e maritacas para que estes repetissem suas ordens e pensamentos em cada are de suas terras e em troca lhes ofereceu as frutas caídas do vasto pomar ao redor da casa-grande. Com chicote numa mão e ferrolho noutra, construiu um império, vigiado diuturnamente por cães ferozes.
Algum tempo depois, a dúzia de funcionários, secretamente, decidiu se rebelar contra o fazendeiro. Estavam furiosos por trabalhar muito e ganhar pouco, além de julgar que o senhorio não administrava bem aquelas terras. Traçaram uma estratégia de tomada do poder. O primeiro passo foi roubar algumas frutas maduras e suculentas do pomar da casa-grande e oferecer a alguns papagaios e maritacas para que servissem de porta-voz daqueles ideais. Cansadas de só comer frutos podres, as aves aceitaram prontamente e começaram a cercar a boiada no pasto, difundindo as injustiças praticadas e garantindo que os trabalhadores rebelados lhes dariam mais pasto, mais descanso, não mais matariam seus pares e deixariam integralmente o leite para seus bezerros.
A boiada gostou daquela proposta de justiça animal. Nas semanas seguintes, os funcionários fizeram greve e o gado se escondeu no pasto, deixando a ordenha e o matadouro vazios. No dia determinado, papagaios e maritacas amanheceram sobrevoando a casa-grande fazendo um estardalhaço, impedindo que o fazendeiro ouvisse a aproximação maciça da boiada, que às cabeçadas colocaram abaixo porteiras e paredes. Entre os tiros do chapelão panamá e as chifradas do gado, alguns morreram, muitos saíram feridos e várias balas e destroços resvalaram, acertando em cheio as aves tagarelas no telhado em chamas. No fim, colocaram o senhorio pra correr, permitindo que o poder fosse transferido à dúzia de trabalhadores que comandaram aquela revolta à distância.
Em pouco tempo, os trabalhadores descobriram que não havia como administrar a fazenda sem um líder. Como todo rebelde, por óbvio, eles próprios temiam a rebeldia e decidiram nomear o mais bobo dos 12, lhes garantindo a repartição de domínios dos setores-chave da fazenda. Poucos dias depois, perceberam também que não poderiam cumprir todas as promessas de justiça animal que fizeram, pois precisavam vender as frutas, a carne, o leite e até os bezerrinhos para gerar os recursos necessários à manutenção da propriedade. Alguns, inclusive, descobriram que roubando o pasto do gado e cortando algumas árvores que lhes davam sombra, conseguiriam levantar alguns recursos para o enriquecimento e pajelanças pessoais, afinal todos os 12 queriam comprar seus próprios chapelões panamá.
A saída encontrada foi colocar cercas elétricas em toda propriedade para evitar que a boiada fugisse para outras paragens e escolher algumas cabeças para ter benesses e comandar o resto da manada. Também escolheram alguns papagaios e maritacas e fizeram o mesmo, em troca de uma tagarelice defensiva. Do seu helicóptero, o senhorio deposto observava a eclosão das revoltas internas nas suas ex-terras. Malandro, ele jogava pequenos panfletos instigando os conflitos e prometendo mundos e fundos aos que permitissem seu regresso ao poder. Escondido entre as nuvens, se reunia diariamente com as jandaias barulhentas. No radinho de pilha, ecoava a voz rouca de um tal Zé Ramalho, cantando: “Eh, oh, oh, vida de gado, povo marcado, povo feliz…” Que feliz, que nada!
No meio dessa disputa, a boiada foi percebendo que estava esquecida, abandonada e iludida, fosse pelo ex-senhorio, fosse pelos novos patrões (ainda disfarçados de trabalhadores), fosse pela guerra de tons entre papagaios, maritacas e, agora, até jandaias. O gado acabou descobrindo que era possível trocar ideias e experiências às margens das cercas com outros da mesma espécie que estavam em terras vizinhas. Paulatinamente, a interação global conquistou a boiada. Por equívoco, as aves tagarelas continuavam achando que o domínio do mundo estava no poder e alcance de sua voz. Também equivocados, tanto o ex-senhorio de chapelão panamá, quanto os ex-trabalhadores, caíam sistematicamente na armadilha de acreditar que o poder resumia-se a seus próprios umbigos.
A boiada, agora interativa, começou a derrubar as cercas, defender seu pasto e suas árvores e sitiar a casa-grande. Pararam de dar seus esforços e vidas para fornecer leite, carne e couro. O helicóptero do ex-senhorio caiu, sem combustível. Presos dentro da sede do pseudopoder, os ex-trabalhadores e os papagaios e maritacas começaram a se estapear, duelando entre acusações e difamações. Neste exato momento, pelas frestas de janelas carcomidas, olham assustados para o lado de fora e avistam os touros da nova geração riscando o chão, preparados para o ataque. No lombo dessa boiada, não há mais marcações feitas a ferro quente. Há uma antena digital, que os permite postagens rápidas nas redes sociais. A boiada interativa se prepara para tomar o poder. O que farão com ele, ninguém sabe ainda. Mas essa tomada é absolutamente inevitável.
Helder Caldeira é escritor e jornalista político