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Buriti agora é apenas um retrato na parede

Na parede do escritório tinha um quadro, já amarelado, relíquia do movimento de anistia. Um jovem com uma mochila nas costas com os dizeres do poeta: "não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá".

 Recordo dessa parede e choro. Ao lado tinha um quadrinho do emblema do Guaraná Tupi, coisa da infância dos campo-grandenses. Penso; isso não é nada diante dos meus 18 anos, quando casei e passei a freqüentar aquele lugar, onde o mato e o campo acolhiam o canto da Jaó,  que respondia ao assovio da perdiz. Ia para lá todo fim de semana, acompanhando meu marido que, com 23 anos, engenheiro, encarava suas responsabilidades impostas por uma herança que veio de repente e drasticamente.


 Pra mim não. Era uma alegria ser a dona da Fazenda Buriti.
Era uma alegria refazer o pomar da minha sogra, plantar horta, fazer um galinheiro, aliás, que galinheiro! Ficou famoso na região. Os fazendeiros mais velhos, e, portanto mais experientes, debochavam. Eu nem ligava, queria educar as galinhas para dormirem certinho nos seus aposentos e na hora certa. Enquanto que elas teimavam e se empoleiravam nos galhos das goiabeiras, das laranjeiras e de outras árvores. Uma teimosia que afrontava a minha onipotência. Como eram burras!


O calor preguento da minha região… que incomodo bom! Lá pelas 11 horas da manhã os frangos já estavam de asas abertas debaixo dos cajueiros. Aliás, meu pomar tinha muito Cajueiro, sempre carregados; e eu também já estava tomando tereré, debaixo do pé de ipê. Varanda, nem pensar, naquele tempo minha casa era de eternit, mas o galinheiro era de telha francesa.


Isso faz muito tempo, foi na minha juventude, quase na adolescência, eu tinha 19 anos.


 E os índios? Estavam aonde? Na colônia, como era chamada a aldeia antigamente, longe dali, tão longe… a cinco quilômetros. Não eram muitos, nem estranhos. Eram índios Terenas que trabalhavam de empreita lá em casa e nos vizinhos. Roçavam pasto, destocavam, carpiam e plantavam comida na colônia. O que sobrava a gente comprava e os vizinhos também.


Os serviços maiores tinham contrato feito com o chefe do posto da colônia, tudo formalizado, não existia carteira de trabalho. Interessante, me lembro, na estrada quando encontrávamos os índios encontrávamos trabalhadores com enxadas nas costas, foices, machados, andando a pé rumo a colônia, alguns de bicicletas.


 A estrada estreita, fechada por um colonião e um Jaraguá exuberantes e nas baixadas húmidas, sapos e gias cantavam. Aquele momento pra mim era um momento de prazer. Nós éramos todos brasileiros que comíamos a poeira daquela terra abençoada, de onde brotavam milho, batata doce, abóbora, feijão, pasto e boi gordo, além das frutas com as quais nossos filhos se lambuzavam e brincavam igual às araras azuis com bocaiúvas vermelhinhas, sujas do barro preto de janeiro.


Volto a pensar nas palavras do poeta: "não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá".


Lembro de outro poeta: " Itabira, apenas um retrato na parede."
O que dizer da minha Fazenda Buriti hoje, depois de tudo?


Só posso dizer uma coisa: podem violentar, queimar, comprar, pagar, nos tratar como prostitutas que não querem se vender e por isso são torturadas e difamadas, mas jamais a Fazenda Buriti será apenas um retrato na parede.


Também jamais poderei voltar para lá, porque fantasmas perambulam em cima dos escombros da minha casa.


Na Fazenda Buriti fui cultivada, como fui gestada no corpo da minha mãe.


Eu sei que elas morreram em maio de 2013, mas sei que me deixaram envolta em uma placenta que ninguém conseguira esbulhar.
 
*Jussimara Bacha é psicóloga e produtora rural