Veículos de Comunicação

Opinião

Caro leitor, você é cliente ou produto?

Que a pergunta acima não lhe soe agressiva. Só o que ela pretende é indagar sobre a natureza da relação que cada um de nós mantém com os veículos que nos trazem informações jornalísticas todos os dias. Alguns são aparentemente gratuitos, como as emissoras de televisão aberta. Por outros é preciso pagar uma assinatura ou o preço do exemplar, tanto faz se esse exemplar chegue até nós pelo correio, pelas bancas ou pelos chamados tablets, como o iPad. O cenário é suficientemente óbvio: às vezes, a gente paga pelo que lê; outras vezes, não.
Acontece que a gratuidade é mera aparência, ela de fato não existe. Quando a gente não paga nada em dinheiro, paga em olhar. É aí que, em vez de cliente, a gente vira produto.
Pensemos na televisão comercial de sinal aberto. Ela tem um modelo de negócio bastante conhecido: o que a sustenta é a receita de publicidade. A mercadoria essencial do negócio da televisão aberta é o tempo da programação que vende aos anunciantes. Em termos menos abstratos, o que ela comercializa, no fundo, é o olhar de seu público. Seu negócio é atrair olhar – em bom número e de algum poder aquisitivo – para depois vendê-lo aos anunciantes.
Nada de indigno nesse modelo, que é legítimo, legal e democrático. Apenas uma observação: nele o cliente é o anunciante; quanto a nós, o público, bem, somos o produto, somos aquilo que é vendido. Em troca da programação que recebemos da TV, nós a remuneramos com o tempo do nosso olhar que dedicamos aos filmetes de publicidade. Trata-se de um escambo consentido e consagrado. Tudo bem. Assim tem funcionado, de modo eficiente e lucrativo, ao menos até hoje.
Pensemos agora na relação de troca que você mantém com este jornal. A resposta é relativamente simples, embora híbrida. Aqui, você, leitor, é cliente, pois o exemplar que você tem agora nas mãos é pago. Ao mesmo tempo, você é produto, pois há publicidade à sua espera logo ali adiante, nas páginas mais à frente. Esses anunciantes pagaram para ter acesso aos seus olhos, para ter um ou dois segundos da sua atenção. Eles esperam que você, ao tomar conhecimento do que eles estão divulgando, compre algum serviço, alguma coisa. Claro, você tem absoluta consciência da expectativa deles. Estamos, então, falando de um jogo limpo, transparente.
Com a internet as coisas já não são tão claras. Os modelos de negócio que há décadas estavam consolidados nos meios de comunicação convencionais foram transpostos para a web, embaralhando quase tudo. Há fórmulas em que o leitor ou espectador (que alguns chamam de “internauta”) precisa desembolsar seus trocados para ter acesso às notícias, aos vídeos ou aos textos (a que chamam “conteúdo”). Em outras fórmulas a gratuidade aparente prevalece – e aí, também, a publicidade paga ou pagará a conta, ainda que de forma indireta. E então? Que fórmula vai prevalecer na era digital?
Se para todos os cidadãos a interrogação é pertinente, para os jornalistas é crucial, para não dizer excruciante. De que modo a imprensa se deve relacionar com o público? Deve tratá-lo como produto ou como cliente? Se as fórmulas híbridas vão prosseguir, qual o estatuto de cada um desses dois componentes? O público, para a instituição da imprensa, deve ser visto antes como cliente ou como produto? Diante disso, os jornalistas são agregadores de olhar que depois será comercializado? Ou eles devem antes buscar a sua sustentação fundamental na remuneração – em dinheiro – que vem do público?
O que vai ficando claro, ao menos até aqui, é que, se o público não financiar diretamente com seu dinheiro – e não apenas com seu olhar – a atividade da imprensa, nós não teremos jornalismo independente. Não custa relembrar: jornalismo independente traduz-se em redações que não se dobram ao Estado ou aos governos, assim como não cedem aos interesses de anunciantes, de igrejas, de partidos ou de ONGs. Se os cidadãos não derem sustentação a isso, não haverá imprensa livre.
Em resumo, ainda que a receita publicitária, na imprensa, possa ter cifras mais expressivas do que a receita vinda da venda de exemplares ou de assinaturas, os modelos de negócio no jornalismo devem saber pôr os interesses do público acima – e não ao lado – dos interesses dos anunciantes. A razão para isso é econômica, política e ética.
Econômica: a receita publicitária existe para remunerar o olhar do público e, desse modo, o público, dono do olhar, é quem financia, na prática, todas as operações jornalísticas. É uma ilusão acreditar que o cliente final é o anunciante.
Política: ao dar sustentação econômica à imprensa, o público dá-lhe sustentação política, pois protege a imprensa contra poderes que são estranhos aos direitos e interesses dos cidadãos. É o público que sustenta a imprensa como o contrapoder que ela deve ser.
Ética: se o público é quem paga a conta, seja com olhar, seja com dinheiro, a ele é devido respeito, na forma de informações confiáveis e de uma atividade cujos efeitos sejam, sempre, a expansão da liberdade.
De toda forma, nada disso ainda está resolvido. Muitos erros ainda serão cometidos. A boa notícia é que a pergunta que está no título deste artigo vem ganhando corpo. A propósito, o nosso título é inspirado num cartoon que circulou recentemente nas redes sociais do Brasil. Ele mostra dois porquinhos contentes comentando que na fazenda onde moram não precisam pagar por comida nem pela hospedagem. Originalmente publicado no site Geek and Poke, o cartoon recebeu depois uma legenda anônima, com uma crítica direta contra o Facebook, e assim correu o mundo. Eis o que diz a legenda provocativa: “Facebook e você. Se você não está pagando para usar, você não é o cliente. Você é o produto”.
Em tempos em que o jornalismo precisa se redefinir como negócio, é bom prestar atenção a isso.

Artigo publicado originalmente no O Estado de São Paulo

Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM