O Brasil está com um pé no século XXI, mas o outro permanece fincado no século XIX. Essa característica dúbia, fruto da tardia transição entre a sociedade agrária para a urbano-industrial, faz do Brasil um país diferenciado capaz de conviver com realidades destoantes. A mais aguda dessas, certamente, é a desigualdade social em que realça o fator pobreza extrema.
Essa pobreza tem sido marcada pela fome, embora estejamos num país com mais de 600 milhões de hectares disponíveis. No entanto, essas terras estão em poucas e mal aproveitadas mãos. Talvez, fruto da herança de 400 anos de latifúndio, dirão alguns. Mas, o fato é: aqui a fome de muitos se mistura ao sucesso do agrobusiness. Assim, convivem-se duas realidades antagônicas: o moderno segura nas mãos dadas do arcaico. A falta de alimentos convive com a exportação de vitaminas, de carnes e de suco de laranja, ainda que incontáveis sejam nossas crianças que nunca tiveram (ou nunca terão) a oportunidade de beber um copo apenas desse suco.
No passado não muito distante, nos fizeram acreditar que bastava a economia crescer para que os mais graves problemas sociais fossem prontamente resolvidos, como se crescimento econômico significasse automaticamente melhoria de vida. Crescemos, e daí? De 1870 a 1980, o PIB brasileiro cresceu mais de 150%. Daqui até 2030 crescerá também mais de 150%. No entanto, no primeiro intervalo de tempo mencionado, apenas concentramos (a renda) mais que distribuímos (os benefícios) de todo esse “crescimento”.
Nos dias que correm, resulta que somos o quarto pior país em termos de concentração de renda do mundo. Uma vexatória marca que ostentamos sendo a sexta maior economia do planeta.
Ainda hoje não é raro encontrar aqueles que insistem em dizer que esse país se desenvolveu. Será? Não! A verdade, nua e crua, é que apenas nos modernizamos, pois, como acertadamente disse Celso Furtado: “como é possível falar em desenvolvimento com tanta gente atormentada pela miséria?”.
De tal modo, convivemos com o moderno e o arcaico, misturados e juntos. Com isso, os problemas econômicos e sociais continuam se avolumando. Pelo caminho tortuoso de uma economia combalida em seu aspecto social e humano, esse “crescimento defeituoso” vai deixando suas vítimas estiradas ao chão. Exagero, dirão alguns. Creio que não! Em pleno século XXI ainda há gente morrendo de fome nessas terras em que “se plantando tudo dá”.
Essa patologia, por aqui, parece ser endêmica. Somos um país com capacidade de fabricar e exportar aviões, mas 1/3 das residências ainda não tem água encanada. Somos donos de uma das melhores cirurgias plásticas do mundo, mas os rostos enrugados de nossos idosos ainda são muito mal tratados pelos baixos e aviltantes salários vindos do INSS.
Os pés descalços de nossas várias crianças convivem com a exportação de calçados de primeira qualidade para os pés das crianças do lado rico do mundo. Continuamos a adoçar as bocas dos europeus, mas não a de nossa gente. Exportamos alimentos que não chegam à mesa de muitos brasileiros. O tempo médio de escolaridade por aqui é semelhante aos de países mais atrasados – menos de cinco anos. A dengue ainda mata gente. O analfabetismo (formal e digital) é alto e a desigualdade, cruel espelho de uma nação desequilibrada, é parecida com a dos tempos feudais.
Para arrumar a casa, falam em reformas. No entanto, elas não acontecem. Quais seriam essas? Primeiramente, a tributária (hoje quem ganha muito paga pouco e quem ganha pouco paga muito); a social (ainda não foi consolidado o estado de bem-estar social, em que pese avanços assegurados pela Constituição de 1988), e, por fim, a agrária (que mantém intacta a estrutura fundiária oriunda das Capitanias Hereditárias). Na somatória dos fatos, reforça-se a necessidade de promovermos a ruptura: fazer o “moderno” engolir o “arcaico”.
(*) Marcus Eduardo de Oliveira é economista, mestre pela USP. Professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO (São Paulo).