O processo de demarcação da reserva indígena Raposa Terra do Sol, no Estado de Roraima, e as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, colocaram a questão dos impactos das demarcações de terras indígenas sobre a atividade agrícola na ordem do dia. O episódio da Raposa Terra do Sol colocou as entidades representativas dos produtores rurais em alerta, o que as levou a se engajar em ações com objetivo de modificar etapas do processo de identificação de terras indígenas.
São duas as preocupações que justificam tais ações: (i) a desapropriação de áreas para terras indígenas autoriza ressarcimento apenas das benfeitorias e infraestrutura existente, o que resulta em perdas patrimoniais para os proprietários; (ii) tendo em vista que existem populações indígenas em áreas ocupadas por produção agropecuária, a demarcação de novas terras (ou a expansão de terras já demarcadas), dependendo do caso e da região, trará impactos na redução da produção de alimentos e produtos agrícolas em geral.
A questão é complexa e multifacetada e exige que sua análise seja feita em diversas perspectivas. Aqueles que analisam o tema apenas na perspectiva das questões legais e jurídicas, chegam a inevitável conclusão de que o processo de demarcação é absolutamente arbitrário, pois todos os participantes são pessoas interessadas em garantir a demarcação, pouco preocupados com impactos econômicos e sociais nas populações que serão retiradas e áreas que serão desapropriadas.
Além disso, uma vez que o processo venceu as etapas coordenadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a tendência é que o Ministério da Justiça, responsável pelas etapas que antecedem a demarcação física da reserva, aprove os termos recomendados no relatório antropológico do grupo técnico coordenado pela Funai. Isto praticamente assegura a homologação da reserva pela Presidência da República.
A segunda vertente de crítica à questão da demarcação diz respeito às escolhas da política indigenista no Brasil. A política seria muito baseada na questão fundiária e negligente em relação à promoção de uma melhor integração das populações indígenas com o resto da sociedade regional, onde os povos indígenas estão localizados.
Essa abordagem é particularmente relevante nos casos das demarcações mais recentes em estudo de reservas indígenas imbricadas em áreas de ocupação humana muito intensas, nas quais a questão patrimonial é menos importante, para os proprietários que serão retiradas da reserva a ser demarcada, do que as atividades produtivas ali desenvolvidas.
É esse ponto, ou seja, o estabelecimento de reservas indígenas em regiões com produção agropecuária desenvolvida, que, a meu ver, precisa ser debatido. O Brasil possui cerca de 110 milhões de hectares de reservas indígenas, espalhadas em cerca de 650 unidades. A grande maioria destas já se encontra regularizada ou nas fases finais de regularização.
No entanto, ainda existe um grande número de terras indígenas nas fases iniciais das etapas de demarcação que, pelo que conhecemos do processo coordenado pela FUNAI, certamente serão homologadas como reservas indígenas. Olhando com cuidado os municípios nos quais essas terras estão localizadas, e cruzando a informação da área dos estabelecimentos do Censo Agropecuário de 2006, facilmente nota-se que a demarcação vai implicar perda de produção.
Obviamente essa informação precisa ser verificada com cuidado porque os dados das terras indígenas, e sua situação do processo de demarcação, são de posse da Funai. Além disso, terras indígenas que ainda estão na fase dos estudos, não tem extensão territorial definida, o que inviabiliza a comparação com o uso corrente do território local.
No entanto, sabemos que existem muitas terras indígenas em processo de demarcação em Estados como Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso do Sul e Bahia. Nestes Estados, não estaria exagerando ao afirmar que todas as demarcações acarretarão em relevantes impactos na produção agrícola local e, consequentemente, na economia das cidades que vivem dessa produção.
Sendo real e verdadeira essa minha preocupação, considero fundamental uma análise diferenciada dos processos de demarcação com potencial impacto negativo na produção local. Infelizmente, o processo de demarcação de reservas indígenas, coordenado e outorgado à Funai, não concebe a possibilidade de analisar os impactos na economia da região que será afetada pela perda de produção.
Embora a questão das populações locais seja abordada pela Funai, ela é abordada apenas do ponto de vista operacional da decisão de se manter ou retirar as pessoas da reserva indígena (e das desapropriações que benfeitorias que precisam ser pagas), mas nunca do ponto de vista dos impactos negativos sociais.
Os casos em que o estabelecimento da reserva indígena claramente acarretará impactos negativos econômicos e sociais ao deslocar produção agropecuária são, a meu ver, fortes o suficiente para se pleitear por mudanças no processo de demarcação de terras indígenas, pelo menos para que o estudo antropológico incorpore tais impactos nas suas análises e conclusões.
( * ) André Meloni Nassar é diretor-geral do Icone e coordenador da Redeagro