A multiplicidade de idéias é fértil no solo democrático. Emerge, porém, o risco de transformação de posturas múltiplas em dualidades na análise de conjuntura política sul-americana.
Mal adentramos o ano de eleições no Brasil e parece que as únicas cartas da mesa foram lançadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). É como se a definição inibisse os demais partidos a ponto de que não lhes resta mais que apoiar um ou outro dos grandes jogadores. Já se fala de alianças para um possível segundo turno e outras especulações.
Ainda, as categorias de “esquerda” e “direita” são recicladas de acordo com o que cada um pensa delas sem qualquer base histórica do que compõe uma e outra. A crítica aos grandes meios de comunicação passou a fazer parte de uma ala mais “esquerdista”, enquanto a outra mais “direitista” se conforma com atribuir a culpa de qualquer desgraça nacional ao presidente Lula. O mandatário assumiu a presidência em janeiro de 2003 como se fosse o responsável por toda pobreza espiritual e material de que o país é testemunha. A polêmica em torno do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos tirou a tranquilidade de alguns grupos em vez de oferecer o gel desestressante. Mensagem: a verdade tem limites. O futuro hóspede do Palácio do Planalto que se prepare para a mesma onda de críticas que crucifica uma única pessoa. Falta a esperança de diálogo no Brasil. O panorama não é mais animador quando se trata de avaliar os nossos vizinhos sul-americanos e comparar os dados de desenvolvimento. Passou-se a falar de medidas de democracia. As dualidades e o desconhecimento das complexidades de cada país induzem a interpretações superficiais e tendenciosas. A última refere-se ao esforço vão de cultivar dois eixos de países na América do Sul: um de políticas mais conservadoras e alinhadas aos Estados Unidos (Colômbia, Peru e Chile) e outro de orientação mais popular e progressista (Venezuela, Equador e Bolívia). Sebastián Piñera ganhou as eleições no Chile e depôs a chance de continuidade das políticas de seus antecessores imediatos, enquanto o líder indígena Evo Morales conquistou o segundo turno de governo com a promessa de refundar a Bolívia. Vizinhos que bebem de mananciais diferentes. E o Brasil em qual eixo se situa? Na pretensão de líder regional até que as vestes caiam e apareça o esqueleto putrefato. Na liderança de missões de paz das
Nações Unidas até que países mais poderosos finquem a bandeira onde não são chamados sem mais nem menos. Olhemos o Haiti. Nos empréstimos ao Fundo Monetário Internacional até que a casa dos novos credores também seja erodida ou inundada pelas lágrimas da natureza, que escorrem incessantemente por Angra dos Reis, São Luiz do Paraitinga, São Paulo, etc. Alguns nos fazem crer que tudo que se avizinha do Brasil é farinha do mesmo saco. Não é de se estranhar que a frente tupinica olha para o mar, enquanto se dá a costa para o continente. É preciso um esforço adicional para entender o dinamismo das propostas antagônicas que, ao contrário de devolver-nos ao trilho, ofusca-nos a visão. Já nos acostumamos com projetos tão discrepantes. O estado de São Paulo anda com dois modelos: o que arrecada muito, mas exige pagar por tudo que o Estado deveria prover segundo o modelo de arrecadação, como na educação, saúde e segurança. Não é à toa que uma parcela considerável dos recém-formados no Brasil sonha com o funcionalismo público. Se mamaram em nós, mamemos neles. Esta é a opção tupinica para o tupinica, que insiste em se espelhar nos protótipos do Big Brother Brasil e – por que não? – do nosso Tio Sam. As mandíbulas do Estado não dão trégua. Nem a esparrela do livre mercado reconforta os pequenos empreendedores diante da hegemonia industrial da China, o predomínio de grandes marcas e a disputa ideológica que fez os Estados Unidos transferirem vinte mil soldados bem ao lado de Cuba. Não é de médicos que o Haiti precisa? Desperdiçamos o tempo escasso do ócio com produtos culturais estadunidenses. Pagamos para que eles sejam nossos senhores de engenho na divisão internacional do trabalho. O mundo ainda precisa de açúcar e seus derivados. Como nos esqueceríamos do etanol? Venho alertando para a redução da análise política às dualidades: Oriente e Ocidente, terroristas e democráticos, “americanos” e “latinos”. A aventura é perigosa. O mundo é muito mais do que nos contam os Ocidentais, democráticos e “Americans”. Há também o risco de tudo parecer natural. A propósito, quase ninguém mais fala do sórdido golpe militar em Honduras que derrubou o presidente legítimo Manuel Zelaya. Enquanto isso comemos o pão que o diabo amassou nas terras da colheita.
Bruno Peron Loureiro é analista de América Latina e Relações Internacionais