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Opinião

Hipocrisia judiciária

Tome-se o exemplo da interlocução direta, corpo a corpo, com o juiz de primeira instância

Pobres e ricos. Síntese maniqueísta, a sociedade é mais plural, mas serve de instrumento didático para definir o que Jorge Luis Borges chamou de astrologia judiciária;  e Francesco Carnellutti, ao final de uma longa vida advocatícia, ao desolado e exagerado sentimento de que a maioria dos processos fracassa.
 Tome-se o exemplo da interlocução direta, corpo a corpo, com o juiz de primeira instância. Não é o ideal do processo, materializado por petições, decisões e recursos escritos. Porém, ocorre amiúde.
 À vista do pobre, o magistrado tende a ver o direito material. Pouco importa o direito processual. Tem ou não direito, reflexão que também se viabiliza numa esquina ou num botequim. Se não pagou, dê um jeito e pague. Não importa se  estão presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, sobretudo depois de passadas as oportunidades procedimentais, ainda que se trate de matéria de ordem pública, tal qual o fenômeno da “nulla executio sine titulo”, apresentável mesmo após os embargos do devedor. 
Acrescenta o ilustre juiz que se sensibiliza com a causa do pobre, gostaria de auxiliá-lo, mas nada pode fazer. 
As lágrimas do descamisado, não raro, percorrem o corredor do fórum, muitas vezes amparado por um nobre e bravo procurador – ainda que desprovido de todos os conhecimentos necessários à ciência do direito – mazela própria de nosso país.
 Contrariamente, face ao mesmo juiz, o representante de um grande banco, antes de tudo, se debruça sobre aspectos processuais da lide, antes de atentar ao direito material. O poderoso faz jus rigoroso à ciência processual. Sem a superação de seus fundamentos, não se fala em mérito. Por mais que um processo se encontre em fase adiantada, impõe-se anulá-lo, se houver causa bastante; todavia, deveria ser o tratamento “erga omnes”. 
É não recomendável o aproveitamento do “fruto da árvore envenenada”.  Justiça, ora a justiça, que sequer Aristóteles não logrou expor com clareza a seu filho Nicômaco. No exemplo acima, do pobre, anula-se o processo, expunge-se, pelo menos, o excesso de execução, sem título. Não é necessária a solidariedade do juiz. A ciência do direito se redime por meio da ciência processual.
Admiramos os processualistas: Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover, Luiz Fux, Araken de Assis, Celso Neves, Botelho de Mesquita, Luís Eulálio de Bueno Vidigal,  uns ainda, felizmente, entre nós, e outros que já se foram,  os grandes frequentadores das tertúlias da “escola paulista” de Liebmann e todos os demais, por todo o Brasil, que carreiam fundamentos à jurisprudência de nossos Tribunais. Escusamo-nos ante os olvidados, dada nossa memória. Inobstante, não podemos deixar de dizer duramente que um belo patrocínio processual é privilégio de abastados. Certo que alguns colegas que têm compromisso sério com a ciência do direito e são desprendidos do egocentrismo patrimonialista formam as exceções de todas as regras.
Tal não obsta em dizer que o direito processual – civil e criminal – é atributo de privilegiados. Os pobres de causas processualmente complexas estão fadados a ouvir o de sempre – a evidência do direito material. Em nosso modo de ver, não há outra palavra a expressar o que foi dito – hipocrisia metodológica e humana – sem a mínima pretensão de ofender.

*Amadeu Garrido de Paula é advogado especialista em Direito Constitucional, Civil, Tributário e Coletivo do Trabalho.