Os trezentos anos da escravidão em nosso país geraram na índole brasileira uma tal discriminação do branco em relação ao negro que, até tempos atrás, candidamente se dizia ter a “alma branca” o negro pacífico e conformado ou, em sendo esse negro alguém com ascendência sócio-econômica, um “embranquecido”. Em outras palavras, diferente na cor da pele, o negro, um ser humano, era também diferente do branco, outro ser humano, e em tal diferença estabelecia- se a sujeição que perdura até agora. Neste momento, ações afirmativas intentam derrubar o preconceito terrível, porque insidioso e revelador da discriminação racial que cultivamos, às vezes mascarada por uma condescendência que não acolhe, porém, tolera. É o comportamento típico da “cordialidade” identificada por Sergio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”. Essa “cordialidade” é uma falsa compaixão, a esconder a repulsa ao negro e o horror a miscigenação, esta que, entre nós, por paradoxal que seja, mostra-se inevitável. E essa compaixão nada mais é que o reverso da crueldade capaz de tapar ouvidos, fechar olhos e endurecer corações ante o fato de que incontáveis negros morreram por maus tratos nos navios que serviram ao tráfico de escravos da África para o Brasil ou aqui mesmo, nos eitos de sol a sol, nas senzalas pestilentas, nas matas das fugas e nos troncos dos castigos. Na verdade, esse genocídio somente encontra escala de comparação em maldade e grandeza com o desvario nazista dos idos da Segunda Guerra Mundial e, como tal, é uma nódoa que impusemos, indelével e vergonhosa para a Humanidade.
Último país das Américas a extinguir a escravatura, dela se serviu o Brasil para sustentar sua economia em modelo oligárquico-agrário, uma trágica opção pelo atraso e que abriu um fosso praticamente intransponível entre nós e os USA, pais com as mesmas extensões e diversidades geográficas que as nossas e, então, com as mesmas potencialidades. Para buscar o progresso que a tornaria um Império, a nação americana confrontou o norte com o sul na Guerra de Secessão, preferindo a pluralidade econômica ao modelo primário escravocrata. Nós, ao contrário, fizemos da mão de obra escrava o insumo para uma economia primária e, para não nos assombramos com uma nação mestiça, nos aferramos às teses da pureza racial e da proeminência branca, um delírio longo. Tardia, a Lei Áurea não conseguiu dar ao escravo liberto os foros de alguém apto a concorrer com outros agentes econômicos na luta pelo sustento e na imposição de sua dignidade. Liberto pela caneta, o negro antes escravo permaneceu agrilhoado à desumanidade com que até então fora tratado e, assim, foi alijado do processo de afirmação do homem brasileiro, vindo a constituir com os seus pares, a multidão dos despossuídos, para os quais a igualdade somente se dá pela exclusão. Por exemplo, de nada adiantou ao negro brasileiro ser a “bucha de canhão” da guerra do Paraguai se no âmago das próprias Forças Armadas, no primeiro terço do século XX, perdurava o ideal de uma elite militar – a do oficialato – vedada a negros, judeus, islâmicos e pobres. No mesmo sentido da exclusão, a marginalização econômica do negro brasileiro haveria de subtrair-lhe as possibilidades de inclusão em estratos sociais relevantes.
No Brasil, entretanto, discriminação econômica – efeito – não é discriminação racial – causa -, esta a gênese do patamar subalterno em que tem permanecido o negro brasileiro, exceções raríssimas à parte. Nossa discriminação racial nasceu em plagas do Benin, vicejou nos galeões do tráfico negreiro, floresceu no Brasil oligárquico e frutificou no legado ignominioso das ideologias sobre raças superiores, um confuso e insustentável posicionamento que vai da leitura literal de citações bíblicas ao verberar de teorias científicas, tais a do Conde Arthur de Gobineau, todas já refutadas pela própria Ciência.
Daí porque, não devemos nos arrepiar com as ações afirmativas em curso no país, tendentes a amparar o negro em sua busca por valorização pessoal e inclusão. Vale, isto sim, aplaudir tais iniciativas, tais a levada à apreciação e aprovação do STF. São iniciativas que têm por inspiração, além da nobreza de seus propósitos, guindar o país a um patamar de modernidade que sepulta, com pá de cal, uma cultura e costumes que sempre cevaram a discriminação racial no mais fecundo proliferar da enganosa e assim chamada “democracia racial”, de tal forma que essa prática passou a ser aceita com naturalidade, como se, de fato, as raças superiores aqui existissem e – pasmemo-nos – em harmonia a não ser denunciada e nem combatida. A política de cotas para as universidades, agora sob o pálio da Suprema Corte, prova que Têmis não é cega e que, pelo veredicto de seus prepostos em nosso Pretório Excelso, impulsiona a Justiça a promover a Equidade. O pano que veda os olhos da deusa não lhe obstrui enxergar a Justiça Social, justa o bastante a ser igual para os iguais e desigual para os desiguais, de modo a prover a estes a igualdade de oportunidades.