Desde o seu nascimento luso (1.500) o Brasil é uma tragédia. Santa Maria, com 238 mortes (até aqui), foi só um sintoma do nosso estado febril e incivilizado permanente. Somos herdeiros da última Idade Média, cuja cultura bárbara se impregnou no renascentismo ibérico (Espanha e Portugal), que deliberou conquistar o planeta no final do século XV, levando para esse “novo mundo” (ibero-americano, incluindo-se nosso país) a mais atroz violência, a irrefreada cobiça (ânimo de usurpação de tudo quanto existe na terra nova, enriquecimento lícito ou ilícito) e a fé (católica).
Basta passar os olhos na nossa origem viciada (até hoje culturalmente não consertada) para entender as tragédias diárias atuais (F. Weffort), que não têm dia nem hora para acabar, porque ainda não nos desvencilhamos dos nossos múltiplos pecados originais, destacando-se a violência animalesca ilimitada (tudo começou com um genocídio brutal contra os índios) e a cobiça (ânimo de exploração da terra, da natureza e dos índios; os que não foram mortos, acabaram submetidos à espoliação, à exploração, em regime de escravidão), ambas amparadas e perdoadas pela fé.
No Brasil, “esse passado [de sangue, de exploração do ser humano e de misticismo] não está morto e enterrado; na verdade, ele nem mesmo é passado” (William Faulkner). Não existe [no Brasil] um só documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie (Walter Benjamin).
O impacto titânico das coberturas midiáticas abundantemente abutricionistas contribui sobremaneira para nos mantermos na ignorância e na passividade frente a outras tragédias diárias que em qualquer país medianamente civilizado desencadeariam uma revolução radical. No trânsito, a projeção para 2012 (os números ainda não foram consolidados pela Datasus) é de 46.395 óbitos, sendo 3.866 por mês, 127 por dia, 5 por hora e uma morte a cada 11 minutos e 21 segundos. Em relação aos homicídios intencionais a mesma projeção é de 53.823 óbitos, sendo 4.485 por mês, 147 por dia, 6 por hora e uma morte a cada 9 minutos e 48 segundos.
Tudo somado, 274 mortes por dia, que não despertam a espetacularização midiática em seu conjunto, porque as mortes imprudentes, para nossa cultura, são desígnios de Deus, e as mortes intencionais atingem em sua quase absoluta totalidade somente os pobres que, constituídos tão somente de braços e pernas, são, por natureza (dizem os cínicos), espoliáveis, torturáveis, vigiláveis, prisionáveis e mortáveis.
É impressionante como fechamos os olhos para outras tragédias anunciadas, que ficam apenas regionalizadas e não ganham força para gerar audiência nacional nos programas de TV, cuja inapetência para discutir profundamente nossos problemas constitui sua marca registrada.
Não discutimos em profundidade a péssima condição da nossa infraestrutura das estradas e ruas, a engenharia ultrapassada na fabricação dos carros, os projetos mal executados que geram alagamentos, licitações fraudadas, desvio de recursos públicos e uso de materiais de segunda linha, distribuição de renda precária, uso das terras do país sem um estudo prévio para desenvolvimento social econômico, falta de oportunidades para amplas camadas da sociedade, combate ao usuário de drogas e não ao verdadeiro traficante, uso político das verbas públicas para a seca, investimento mais alto em presídios do que em escolas, carga tributaria elevada, sem contraprestação à altura para o povo, etc.
Mas como brasileiros e herdeiros diretos da cultura bárbara da Idade Média, marcada pela violência, cobiça e fé (Weffort), acreditamos que tudo pode mudar após o carnaval. É dessa maneira mística, sanguinária e incivilizada que estamos perdendo a oportunidade de nos tornarmos um país mundialmente competitivo. Queremos mudanças, mas não promovemos diariamente em nossos hábitos as mudanças que gostaríamos de ver no nosso país.
*Luiz Flávio Gomes é jurista