Várias cidades na região abrangida pelas duas porções às margens do rio Paraná – a esquerda, no Estado de São Paulo, a direita, em Mato Grosso do Sul – surgiram ao longo da Noroeste do Brasil, ferrovia que, partindo de Bauru caminhou em direção ao oeste paulista, atravessou o grande rio e aprofundou-se em território matogrossense na pretensão de juntar-se à malha ferroviária da Bolívia, ligando aquele país e o oeste brasileiro aos pólos industriais na metrópole paulistana e ao terminal exportador de Santos. O primeiro traçado da estrada veio até Itapura, em paralela ao rio Tietê, também uma via de penetração sertão adentro desde as bandeiras e, depois, rota de suprimento militar na Guerra do Paraguai. Então, se imaginava em Cuiabá o ponto final da ferrovia. Porém, a insalubridade de Itapura impôs um desvio, o ramal de Jupiá, ao depois transformado em tronco, fixando-se o “fim da linha” em Corumbá. Com a estrada de ferro, as cidades regionais iriam florescer para, em seguida, à conta do processo de especialização econômica, sofrerem o esvaziamento e a estagnação pelo avanço da fronteira agrícola rumo ao norte do País.
Prevalecesse o traçado original da Noroeste do Brasil e fosse outro o sitio da primeira hidrelétrica de Urubupungá, que não Jupiá, aguça a imaginação saber como seria Três Lagoas que, na hipótese de não contar com a ferrovia, mesmo assim continuaria favorecida pela malha viária em que se confinaria, fator preponderante a influenciar as decisões econômicas sobre seu destino. É que as cidades, estejam elas alinhadas à margem de um rio ou de uma estrada, sobre uma colina apta à uma fortificação, erguidas à beira-mar ou em planícies agricultáveis, em território de topografia suave ou de ambiente ameno, mais que o seu equipamento urbano, são essencialmente o resultado da vontade de sua gente, o sopro vital que as impregna do ânimo da permanência e lhes infunde a identidade.
Por sediarem Urubupungá, miremos, assim, dois exemplos que nos são próximos, Ilha Solteira – por sinal, distante da ferrovia – e, ao já mencionado, Três Lagoas. Corria então a década de 60 do século passado e a estrada de ferro, antes, decisivo instrumento de desbravamento e colonização de um território virgem e inóspito, não mais conseguia barrar o esgotamento das cidades que fizera nascer, cidades essas temporariamente salvas de iminente decadência com o advento do empreendimento energético. Mas Urubupungá, – que, pelo seu tamanho e ineditismo, impactou o Brasil em termos de engenharia financeira, tecnologia no acompanhamento e gerenciamento de projetos, além de complexa logística – foi um evento transitório e destinado, no seu desfecho, a suprir de energia os grandes e distantes centros consumidores, daí impactando muito mais a região, pois, a rigor, uma intrusão, algo que nunca teve nenhuma convergência com os interesses regionais, ao contrário amplificando em perversa escala as repercussões negativas de sua presença, pois que, findas as grandes obras, muitas secções das cidades atingidas se mostraram ociosas e condenadas ao desmanche.
No caso de Ilha Solteira, uma apavorante equação de custo-benefício assombrou durante certo tempo. Essa equação intentava convencer com frieza matemática que o Acampamento – uma verdadeira “cidade sueca” – poderia ser posto ao chão, visto que seu investimento e seu custo de manutenção estavam embutidos em taxas de retorno sustentadas pela tarifa do fornecimento futuro de energia elétrica. A alternativa? O aproveitamento como colônia penal. Mercê da resistência feroz de lideranças emergentes, o Acampamento a ser desmobilizado sob tratores tornou-se um centro universitário de excelência.
Três Lagoas, que nasceu sobre os trilhos da ferrovia; que também conheceu do amargor de ver seu equipamento urbano subaproveitado quando pronta a hidrelétrica de Jupiá, ao contrário de entregar-se ao marasmo e cônscia de que a condição de entroncamento viário fluvial, terrestre e ferroviário lhe era favorável, foi buscar em políticas fiscais e urbanas de criatividade e ousadia, a sua alternativa. Uma alternativa traduzida em empreendimentos que, em curto espaço de tempo colocou a cidade na liderança regional e a exibir um crescimento exponencial que, do ponto de vista de sua estrutura urbana e do seu dispositivo de serviços públicos, certamente está a exigir – e exigirá – investimentos significativos para garantir qualidade de vida a uma população crescente, de modo a não repetir aqui, as muitas disparidades e desigualdades que marcam a cara deste nosso Brasil, tal a mostrada nos números do censo em andamento, revelando, por exemplo, um país com elevada telefonia móvel, mas carente de saneamento básico; campeão mundial nas commodities e com invejável taxa no PIB, mas com infraestrutura sofrível para distribuir a fartura do nosso “agrobusiness”. Garantir crescimento duradouro e sustentado e capaz de sobrepor-se a eventuais ciclos negativos é, certamente, um desafio para cidade. Ao propor-se tal desafio, não há porque cogitar sobre o que teria acontecido a Três Lagoas sem a ferrovia. A ferrovia veio, mas sucumbiu ao Brasil profundo. A cidade, por seus administradores e seus líderes em todos os misteres, enfileira-se ao Brasil potência e, superando obstáculos, cresce de tal forma que, servir-se de uma via férrea economicamente viável porque moderna, no museu a bitola métrica do passado, fará muito bem ao que se produz aqui .
Hélio Silva é advogado e economista