O Estado Democrático de Direito assemelha-se a um edifício. Quanto mais fortes e resistentes forem suas fundações, tanto mais vigorosas serão suas colunas. Quanto maior cuidado se emprestar à estruturação da base, menores serão as chances de quaisquer das vigas rachar, em comprometimento da funcionalidade do todo.
É necessário, todavia, que os mesmos atores que de uma forma ou de outra contribuíram para o levantamento do edifício erguido sob a força da estrutura, vez ou outra identifiquem determinadas rachaduras e promovam os reparos necessários, sob pena de que o prédio perca a imponência da sua verticalidade e passe perigosamente a se inclinar.
Quando a nação rompeu com a ditadura militar e celebrou o pacto político-social que fez gerar a Constituição Federal de 1.988, esperava-se, enfim, o funeral cadente das práticas totalitárias que outrora suprimiam direitos fundamentais. A esperança era de que as prescrições contidas no novo diploma fundamental da nação impusessem freio às vontades particulares de cada um e inibisse o triunfo do governo dos homens sobre o governo das leis.
Uma das principais preocupações que naquela época se impunha era a de que a vida íntima e a privacidade dos cidadãos fossem preservadas. Afinal, nos tempos de repressão, a devassa e a espionagem eram justificadas e distorcidas retoricamente como “política de Estado”, e em nome da “segurança nacional” pessoas eram sistematicamente vigiadas e seus passos policiados.
A despeito do vigor da base constitucional que alçou a privacidade e a intimidade como um dos direitos fundamentais do cidadão, a sociedade civil organizada (a grande protagonista do pacto que deu luz à Constituição de 1988), à exceção de um outro setor, não se prestou ao cuidado de fiscalizar e de reparar as rachaduras causadas pelo mau uso do edifício.
Por isso, reputo que a recente quebra do sigilo fiscal operado por agentes do Governo Federal contra parentes e políticos da oposição não brotou do vazio. Trata-se de um surto totalitário que teve começo, está no meio e certamente terá um fim, para o bem ou para o mal.
A gravidade do fato e suas implicações impõem que as autoridades – Polícia e Ministério Público -, sinalizem à sociedade, pela imprensa, que os fatos serão apurados, os responsáveis punidos e as vítimas indenizadas na mesma proporção dos lamentáveis acontecimentos.
Mas é temerário imputar nesse momento, a esta ou àquela autoridade pública (ou àquele agente público), a este ou àquele partido político, a responsabilidade pelo que ocorreu. A apuração das responsabilidades, a reprodução dos fatos e a busca da verdade pressupõem devido processo legal, direito ao contraditório e à ampla defesa, sob pena de se combater o mal com outro mal consistente em se querer suprimir o processo judicial e trocá-lo por condenações sumárias lastreadas em meros indícios e presunções.
Sugere-se, neste espaço, que os setores organizados da sociedade civil se articulem no sentido de levar ao conhecimento do grande público o que é sigilo, os porquês do sigilo e os perigos decorrentes de sua violação. Enfim, o que ora se propugna é que se crie a massa crítica de conhecimento e de discussão do assunto fora da órbita das instituições. Uma discussão que seja para o povo e com o povo.
E, claro, que as autoridades competentes venham a público, através dos jornais, para que digam à sociedade que os fatos serão apurados e os responsáveis condenados neste que é mais um capítulo da história de bisbilhotagem que só apequena a imagem das instituições brasileiras.
É o que penso.
Ricardo Trad Filho é advogado e Conselheiro Estadual da OAB/MS