É como diz o escritor e publicitário Ciro Pellicano: “os enganadores, até quando caem no chão, fazem blefe”. Foi com essa sensação que recebi a notícia de que, desde o início da semana, os sigilos fiscais na Receita Federal do Brasil estão disponíveis a qualquer funcionário, prestadores de serviços terceirizados e até estagiários do órgão. Uma suprema malandragem da Presidência da República e da Secretaria da Receita para limpar suas barras no recente escândalo de vazamento de sigilos e, sobretudo, para legitimar o futuro acesso indiscriminado, e criminoso, aos dados fiscais de milhões de contribuintes brasileiros.
Por que para acessar meus dados fiscais e minhas prestações de conta, qualquer um pode fazê-lo, mas só a Justiça pode quebrar os sigilos fiscais de excelentíssimos figurões como José Sarney, Paulo Maluf, Joaquim Roriz e tantos outros Ali-Babás? Por que os relatórios sobre o que eu ganho com meu trabalho suado e honesto, e sou obrigado a declarar, estão disponíveis para qualquer estagiário e as farras e churrascadas da cúpula palaciana do presidente Lula, pagos com os cartões corporativos (que são bancados com o dinheiro público dos impostos que declaramos e pagamos) são segredos de Estado?
“Somos conduzidos como títeres que o fio manobra”, na célebre citação do filósofo romano Horácio. É tratando-nos como marionetes que o Governo Federal age agora para limpar a lambança feita durante a farra de dossiês da campanha eleitoral, quando funcionários de carreira da Receita Federal acessaram o sistema, roubaram (essa é a palavra mesmo!) e venderam os dados sigilosos de políticos oposicionistas ao presidente Lula. Mais tarde, foi revelado um vasto comércio ilegal de dados constitucionalmente sigilosos, muitas vezes vendidos por risórios R$ 70. No melhor dos neologismos cunhados pelo ex-deputado Roberto Jefferson, uma quadrilha de “petequeiros” a serviço das estruturas partidárias.
No dia 5 de outubro, o presidente da República adota a Medida Provisória 507/2010 que cria hipóteses específicas de sanção disciplinar para casos de violação de sigilo fiscal e as ocasiões onde eles podem ser fornecidos, mas, através do parágrafo 3º do Artigo 5º desta MP, determina que “a Secretaria da Receita Federal do Brasil editará os atos para discipliná-las”. Exatamente um mês depois, em 5 de novembro, o secretário da Receita, Otacílio Cartaxo, instituiu a Portaria 2.166/2010 onde autoriza o acesso às informações protegidas por sigilo fiscal a qualquer servidor do órgão, a prestadores de serviços (ou seja, os terceirizados), aos estagiários e até a estudantes em pesquisas acadêmicas. Virou uma farra. É a universalização dos Francenildos.
Obra do acaso (?!), no mesmo dia em que o governo anunciava essas medidas indisciplinares com os sigilos fiscais dos contribuintes brasileiros, a Polícia Federal deflagrou a operação Trem Fantasma, onde identificou 50 pessoas envolvidas em um esquema criminoso responsável pela entrada ilegal de 80 toneladas de mercadorias importadas por ano no país. Segundo cálculos da PF, a quadrilha causava, anualmente, um prejuízo de R$ 50 milhões aos cofres públicos. Durante a operação, impressionou a apreensão de maletas recheadas de dinheiro, uma delas com quase US$ 1 milhão. Entre as dezenas de presos na operação Trem Fantasma, adivinhem quem estava? Funcionários da Receita Federal do Brasil. E nós ainda temos que confiar na honestidade e na lisura de todo e qualquer servidor, terceirizado ou estagiário manuseando nossos sigilos fiscais? Pura balela desses prestidigitadores malandros.
Sinceramente, já ultrapassamos todos os limites da sacanagem, do mau-caratismo e da falta de vergonha na cara no Brasil. E tenho certeza que ainda virão os parlapatões dizer: “ué, quem está reclamando é porque tem algo a esconder”, chancelando a bandalheira política. Não há respeito sequer pela inteligência do cidadão, quiçá por seus direitos constitucionais. A Receita Federal do Brasil é só mais um prato no cardápio de corrupção e má gestão que tomam conta do Estado e do qual se fartam os canalhas nacionais. Afinal de contas, já diz a música, “malandro é malandro, mané é mané”.
Helder Caldeira é escritor, colunista político e conferencista