Marcos Cintra *
O governo editou, em 13 de julho, a Medida Provisória 683, na qual são criados dois fundos que, em tese, vão ao encontro de bons propósitos da sociedade. Mas suspeito que sejam apenas factoides.
O primeiro deles é criado com o objetivo de “reduzir as desigualdades socioeconômicas regionais, custear a execução de projetos de investimento em infraestrutura e promover maior integração entre as diversas regiões do país”. E o segundo objetiva “auxiliar financeiramente os Estados e o Distrito Federal durante o período de convergência das alíquotas do ICMS” nas transações interestaduais que serão reduzidas para converter o regime daquele tributo de majoritariamente de “origem” para majoritariamente de “destino”. A intenção é combater a guerra fiscal e transferir mais recursos para os Estados consumidores, em geral, mais pobres que os Estados produtores. Beleza.
Contudo, esses fundos serão capitalizados com recursos incertos e não sabidos, oriundos de “instituição e arrecadação de multa de regularização cambial tributária relativa a ativos mantidos no exterior ou internalizados”.
As condições que deram origem às remessas irregulares de recursos ainda persistem em nosso ambiente.
Afora a vaga e imprecisa redação conferida ao ponto essencial desses fundos, qual seja a fonte de seus recursos, a expectativa de que tais multas resultem em valores significativos é no mínimo ingênua e pode ter como objetivo criar ambiente irrealisticamente favorável para a aprovação de duvidosa “reforma” tributária, que nada mais é do que um ajuste no ICMS.
Dizem alguns adivinhos que o montante de recursos brasileiros ilegalmente transferidos ao exterior atinge um saldo de US$ 500 bilhões. Ninguém sabe. Uma estimativa da Global Financial Integrity, divulgada no relatório “Brazil: Capital Flight, IllicitFlows, andMacroeconomics Crises, 1960 2012″, afirma que o fluxo financeiro ilícito, entre 1960 e 2012, somou US$ 401,6 bilhões.
De um modo geral, os recursos acumulados no exterior vêm sendo transferidos irregularmente há décadas, tendo como causas a incerteza política, insegurança institucional, falta de confiança, má gestão pública e abusivo sistema tributário vigentes no Brasil. Sem falar em confiscos e em atividades criminosas mais pesadas tais como tráfico de drogas, de armas, contrabando, roubos, corrupção etc.
Além da prescrição para efeitos tributários, parcela considerável desses fluxos é antiga e já pode ter sido “regularizada” no exterior, tornando-se possivelmente inalcançável pela proposta brasileira de “anistia onerosa”. Outra é oriunda de atividades criminosas e, por conta disso, não abrangida pela MP 683. E aqui reside uma fonte de enorme confusão, pois o projeto do governo exige que a origem dos recursos ilegais a serem internados seja comprovada. Certos “crimes” serão tolerados e outros não. Mas como tipificá-los claramente uma vez que em geral são ações complexas que envolvem diversas ilegalidades conjuntamente?
Ademais, mesmo os valores ainda passíveis de serem voluntariamente repatriados deverão ser objeto de cuidadosa análise por parte de seus detentores para avaliar se há vantagem em confessar os ilícitos, pagar multa e repatriá-los.
Sabe-se que os esforços mundiais na administração tributária e no controle de capitais estão sendo permanentemente aprimorados mediante a celebração de convênios de trocas de informações entre fiscos de vários países. A cada dia torna-se mais arriscada e dispendiosa a prática de crimes econômicos e tributários, o que pode ser fator de estímulo à regularização e internação de recursos irregulares no exterior.
Não obstante, o país enfrenta forte desgaste em sua atratividade econômica. Percebe-se que as remessas de capitais ao exterior, legais ou ilegais, estão aumentando. Pela primeira vez em sua história recente, o país exporta seus talentos empreendedores e seus respectivos capitais, formando um autêntico “brainand capital drain”, depauperando seu estoque de investidores e de empresários domésticos, que buscam oportunidades em outras economias do mundo.
Tais fluxos emigratórios de empresários, e não apenas de força de trabalho bruta, têm origem quando residentes fogem de seus países de origem em função de riscos políticos e de má administração pública. Portanto, para o Brasil, não se trata de momento propício para atrair capitais.
Ademais, a confissão de prática de ilícitos, tais como lavagem de dinheiro, remessa ilegal e falsidade ideológica, mesmo que anistiadas, traz consigo riscos de denegrir a imagem, sem falar na perspectiva de passarem a se tornar alvos preferenciais de futuras ações de fiscalização.
Medidas tais como a proposta de MP 683 já foram consideradas inúmeras vezes no Brasil e praticadas algumas vezes no exterior, sem que se tenha notícia de sucesso em seus desígnios. De acordo com exemplo dado por um administrador de ativos no Brasil, divulgado no jornal Valor em 15 de julho último, a Itália criou um programa similar com tributação de 5% esperando regularizar € 500 bilhões e conseguiu atrair apenas € 80 bilhões. No caso brasileiro, estima-se que a multa alcance valores elevados, de 35%.
Além disso, as condições que deram origem às remessas irregulares de recursos tais como insegurança jurídica, incerteza política e sistema tributário pouco amistoso, ainda persistem em nosso ambiente político-econômico. Assim, não há porque imaginar que possa haver significativo interesse na repatriação desses recursos.
* Marcos Cintra é doutor em economia pela Universidade Harvard e professor titular de economia na FGV. Foi deputado federal (1999/2003) e autor do projeto do Imposto Único.