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Opinião

Toque de Recolher - Violação de Diretos e Liberdades

Fenômeno que vem acontecendo em algumas cidades brasileiras, o chamado “Toque de Recolher” ou “Toque de Acolher”, como alguns têm denominado, vem sendo imposto por algumas Varas Judiciais da Infância Juventude, sob o argumento de proteção à criança e ao adolescente, em razão dos índices de violência que grassa pelo país afora.
 
A liberdade, como direito natural e fundamental do ser humano, assegurado constitucionalmente, vem sendo sistematicamente violado, ao impor restrições ao direito de ir e vir das pessoas, sejam crianças e adolescentes ou adultos. A proteção especial que o Estado deve dedicar à família e as crianças, tal como assegurado no Estatuto da Criança e do Adolescente, não pode ser desvirtuado a esse ponto, para, sob o falso argumento de proteção, impedir que os jovens possam sair às ruas, visitar amigos, estar presente nos espaços sociais, usufruir do lazer, enfim, usufruir do sagrado direito à liberdade, que compreende o direito de ir e vir e voltar pra casa a hora que entender necessário, observado, é claro, os direitos dos demais cidadãos e as regras do convívio social.
 
Vejo uma verdadeira inversão na lógica de defesa social: restringe-se a liberdade dos cidadãos de bem sob o argumento de conter a violência. O toque de recolher representa a oficialização desse inversão – as pessoas de bem são recolhidas em casa e os bandidos ficam soltos na rua. A incapacidade do Estado de garantir a segurança e a tranqüilidade da população não pode ser dissimulada com medidas que violam direitos e garantias individuais.
 
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), já manifestou-se contrariamente as medidas que vem sendo adotada por algumas Varas de Infância e Juventude, entendendo que “o Toque de Recolher contraria o ECA e a Constituição Federal. É uma medida paliativa e ilusória, que objetiva esconder os problemas no lugar de resolvê-los. As medidas e programas de acolhimento, atendimento e proteção integral estão previstas no ECA, sendo necessário que o Poder Executivo implemente os programas; que o Judiciário obrigue a implantação e monitore a execução e que o Legislativo garanta orçamentos e fiscalize a gestão, em inteiro cumprimento às competências e atribuições inerentes aos citados Poderes.”
 
Há medidas de exceção previstas na Constituição Federal e elas permitem a supressão das garantias e liberdades individuais, porém, são medidas adotadas apenas em períodos críticos de grave perturbação da ordem e que atentam contra as instituições e o Estado Democrático de Direito e a Segurança Nacional, nos específicos casos de Estado de Defesa e Estado de Sítio (arts. 136 e 137 CF/88).
 
O Toque de Recolher é uma media de exceção e nos parece exagerado adotá-la na situação de normalidade que vivemos. Não há em Mato Grosso do Sul uma única cidade que apresente problemas sociais capaz de justificar a extremada medida. Os pais que exercem verdadeiramente o pátrio poder, impondo limites, exigindo obediência, acompanhando e monitorando a atividade de seus filhos, não podem se calar diante dessa medida restritiva que coloca a todos na mesma vala comum. A própria legislação brasileira impõe responsabilidades aos pais que não cumprem seus deveres, bem como, aos agentes públicos e à própria sociedade, devendo ser canalizado os esforços das autoridades envolvidas nesta importante questão, para que desprendam o mesmo empenho em responsabilizar as pessoas, empresas e autoridades que desrespeitam ou se omitem no cumprimento de seus deveres.
 
A sociedade organizada deve canalizar esforços para melhorar os mecanismos de combate aos abusos sexuais, exploração de mão de obra infantil, pedofilia, venda e consumo de bebidas alcoólicas, fiscalizar mais rigorosamente os bares, boates, motéis, casas de jogos e tantos outros estabelecimentos (muitas vezes irregulares) que permitem o ingresso irrestrito de jovens, locais onde ocorre a prática de atividades perniciosas para a formação desses adolescentes.
 
A vida impõe desafios a cada um de nós, seja na infância, adolescência, fase adulta ou velhice, em cada uma deparamos com novos e diferentes desafios que precisam ser enfrentados e vencidos, para tanto, devemos nos preparar para superá-los. A educação, a formação de caráter, o estudo, o aconselhamento e os limites impostos pelos pais, a estrutura familiar e tantos outros valores, se constituem nos verdadeiros escudos que irão nos proteger ao longo da vida e permitir que suportemos todas as tentações. Não são medidas artificiais e ilusórias como o toque de recolher, que irão proteger nossos jovens das vicissitudes da vida, como drogas, álcool, prostituição, violência física, irresponsabilidade no trânsito e tantas outras. A verdadeira proteção a esses jovens será obtida com o oferecimento de autênticas oportunidades: oportunidade de estudo, oportunidade de trabalho, oportunidade de convivência familiar, oportunidade de laser e outras que decorrem do convívio social. Tais oportunidades só se conquistam com o empenho da família, da sociedade, dos governantes, das autoridades constituídas, enfim, esforço conjunto da sociedade para dar aos jovens os meios e garantias adequadas para que cresçam forjados num bom caráter, com responsabilidade e consciência social.
 
Mais que ser uma medida inócua e inconstitucional, esconder nossas crianças e adolescentes em casa não é a saída adequada para protegê-las das adversidades que deverão encontrar ao longo da vida. Assim como a ave prepara seu filhote para o primeiro vôo e o ensina a procurar alimentos, devemos preparar nossos filhos para enfrentar o convívio social e defender-se dos males a que estarão sujeitos e se transformarem em adultos responsáveis e produtivos, num circulo virtuoso e perpétuo.
 
Matusalém Sotolani – Delegado de Polícia