Estamos sendo enganados no Brasil pelo populismo penal. O recurso ao direito penal para a criminalização (primária) dos delitos relacionados com o trânsito se encontra amplamente justificado. O direito administrativo (Código de Trânsito brasileiro e outras normas), isolado, não se apresenta com a suficiência necessária, diante das gravíssimas implicações e consequências das infrações viárias (46 mil mortes somente em 2012, conforme projeção do Instituto Avante Brasil), assim como da relevância dos bens jurídicos envolvidos (vida, integridade física etc.).
Opinião
Trânsito e populismo penal legislativo
Mas imaginar que a utilização das normais penais, por si só, constitua a solução para o problema é um grande equívoco. Isso é enganação. E é nesse grave equívoco que têm incorrido tanto a política brasileira de segurança viária como grande parcela da população, que sempre se ilude com o agravamento das leis (achando que vai melhorar). O legislador não pode deixar de fazer nada, é verdade, mas tampouco pode deixar (dentro do seu papel fiscalizatório do Poder Executivo) que nada mais aconteça depois da edição da lei.
Impõe-se compreender, desde logo, que o ius puniendi conta com uma missão preventiva bastante humilde e acessória. Para que a lei penal seja útil (isso é que o legislador jamais deveria perder de vista), “previamente deve existir uma normativa administrativa eficaz, com um concreto funcionamento dos seus aspectos educativos, preventivos e sancionatórios. Essa exigência é fundamental. Por isso, para além das reformas legais, se faz imprescindível o desenvolvimento de meios materiais e humanos. Ou seja: maiores controles de velocidade e de alcoolemia, maior presença e atuação preventiva e dissuasória da polícia etc. Ademais, é preciso que a Administração Pública cuide bem do estado das infraestruturas, da sinalização, das condições do parque automobilístico, da formação dos condutores e da instrução dos pedestres (e ciclistas e motociclistas), da limitação da velocidade dos veículos na fabricação e que melhore a assistência e deslocamento dos feridos” (González Cussac e Vidales Rodríguez: 2008, p. 196).
Lamentavelmente, tudo isso é muito deficitário no nosso país. A fraqueza e a debilidade do Poder Público, diante do enorme desafio que sugere a diminuição das mortes no trânsito, estão mais do que evidenciadas. A falta de coordenação entre os órgãos públicos, a carência de materiais e de pessoas, o deplorável desvio do dinheiro arrecadado com as infrações de trânsito, dentre outros fatores, contribuem para o mau desempenho preventivo da lei penal.
Apesar de todas essas limitações, basta um mais ou menos relevante aumento do número de mortes para que o legislador tome suas providências (de endurecimento penal e administrativo, sempre). É isso que estamos fazendo no nosso país.
Essa política da enganação legislativa, no campo da segurança viária, começou sistematicamente com o Código de Trânsito brasileiro em 1997, quando o Datasus já registrava 35.620 mortes no trânsito. A reação punitiva e fiscalizatória foi imediata e relativamente eficaz, tendo em vista o amplo apoio midiático dado ao novo Código.
Quando esta lei parou de produzir o efeito desejado, modificou-se novamente o CTB, em 2006, e aí já contávamos com 36.367 mortes. Não tendo funcionado bem essa nova lei, veio a Lei Seca de 2008, quando alcançamos o patamar de 38.273 mortes.
De 2009 para 2010, logo depois de passada a ressaca da lei seca de 2008, aconteceu o maior aumento de óbitos no trânsito de toda nossa história: 13,96%. Aumento notável na frota de veículos, sobretudo de motocicletas (hoje com 75 milhões no total), frouxidão na fiscalização, morosidade na punição e erros crassos da lei, tal como a exigência de comprovação de 6 decigramas de álcool por litro de sangue: foi dessa maneira que chegamos em 2010 a 42.844 mortes (dados do Datasus). Sem uma sistemática política de prevenção de acidentes, só nos resta ir contabilizando as mortes, projetadas para 46 mil em 2012.
*Luiz Flavio Gomes é jurista