‘Sempre que o arbítrio se estabelece – e não há exceção a essa regra -, a liberdade de informação e expressão é o primeiro inimigo a ser eliminado. Não foi diferente no Brasil, no intercurso do regime militar de 1964. Perseguiu jornais e jornalistas e coroou esse processo com a famigerada lei 5.260, de 1967, a Lei de Imprensa.
O fato de, 24 anos após a ditadura, estar ainda em vigor, em plena vigência do Estado democrático de Direito, fala por si. É uma anomalia, em total desacordo com o espírito da Constituição de 1988, que, em diversos de seus dispositivos, garante plena liberdade de imprensa e manifestação do pensamento.
Basta ler, entre outros, os incisos IV, IX e XIV, do artigo 5º, e o artigo 220 e respectivos parágrafos 1º (este, inclusive, proibindo que se legisle restritivamente à liberdade de imprensa) e 2º. Compare-se a seguir o teor desses dispositivos com os da Lei de Imprensa, presentemente submetida ao Supremo Tribunal Federal. São absolutamente incompatíveis. E sabemos que, quando isso acontece – quando uma lei ordinária conflita com a Lei Maior, a Constituição -, é nula de pleno direito. No caso presente, o STF já reconheceu parcialmente esse conflito constitucional, ao suspender, ano passado, a vigência de 20 dos 77 artigos da lei 5.260.
Os excessos da atividade jornalística já estão há muito capitulados no Código Penal. São os crimes de injúria, calúnia e difamação. Não há outros decorrentes de eventuais desvios na prática desse ofício. E se aplicam não apenas a quem o exerce, mas a todos os cidadãos, igualmente livres para se manifestar, sem prejuízo das responsabilidades decorrentes desse ato. A Lei de Imprensa, porém, estabelece inaceitável desigualdade, prevendo penas mais graves ao jornalista. Ora, se o cidadão comum que se excede nas suas manifestações verbais – por escrito ou oralmente -, submete-se apenas ao Código Penal, por que o jornalista responde perante duas instâncias punitivas?
É punido como cidadão, pelo Código Penal ou como jornalista, pela Lei de Imprensa. Tem-se, entre outras, mais esta anomalia: o profissional da informação e da manifestação pública de pensamento, que o exerce não apenas como direito constitucional, mas também por dever, dispõe de menos liberdade para fazê-lo que os demais cidadãos. É menos livre que os demais.
A Constituição, claro, não respalda nada disso. Garante, ao contrário, plena liberdade de expressão, do sigilo da fonte, e vai ainda mais longe: impõe também ao Estado o dever de informar o cidadão, sem subterfúgios, a respeito dos dados que sobre ele retém, possibilitando, inclusive, que corrija o que eventualmente esteja distorcido (habeas data, art. 5º, inciso LXXII). Impõe também que informações de interesse público sejam prestadas.
Com base no mesmo princípio – de que informação é direito inalienável do cidadão -, a OAB apresentou, em 2007, ao STF, ação direta de inconstitucionalidade contra as leis 11.111/05 e 8.159/91, que tratam do sigilo de documentos públicos.
O objetivo imediato é a abertura dos arquivos da ditadura militar, mas seu sentido é bem mais amplo: garantir o acesso do cidadão à sua própria história – à memória nacional. O Brasil tem o direito de saber o que aconteceu consigo mesmo em duas décadas de ditadura. Essa é uma dívida moral e institucional que este e os governos que o precederam têm com a nação. Anistia não é – não pode ser – sinônimo de amnésia.
Um país que não conhece sua história, sobretudo seus momentos mais sombrios e controversos, condena-se a repeti-la. É razoável que algumas informações, que envolvam a segurança nacional, estejam circunstancialmente protegidas pelo sigilo. Mas esse sigilo não pode ser eterno. Em algum momento, superada a circunstância que o motivou, tem que ser rompido. Não se pode sonegar a história – e muito menos dar a essa sonegação status de cláusula pétrea.
O cerceamento, ainda que melífluo, subliminar, da liberdade de imprensa – e a lei 5.260 está longe de ser sutil – conspira contra a construção da memória nacional. Serve a uma filosofia perversa, que a Carta de 88 revogou: a de que seria legítimo suprimir da cidadania o bem comum da informação – seja a do passado, seja a do presente. Se assim fosse, o futuro estaria inapelavelmente comprometido’.
Cezar Britto é presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil