A cena se repete há mais de vinte anos. Mas só é possível percebê-la durante a noite. Eles vão chegando aos poucos pelas bordas. Uns, se arrastando, outros, aos saltos, ao som do coachar serelepe da rã que escapa do jacaré-de-papo-amarelo que a espreita. O rito se prolonga pela noite inteira, em meio a calmaria que assombra o transeunte solitário com tamanha paz e segurança. É assim que se sentem capivaras, antas, sucuris, lobos-guarás, tamanduás e catetos. Sob a vigilância da coruja atenta para o esturro da onça, por entre as croas de matas e varjões, eles adentram pelas margens do Paranazão e rio Verde amigos. Todas as noites, eles se refestelam na areia, pelas curvas da estrada solitária, paraíso dos livres em um santuário de meu Deus. É assim por todos os 22.886 hectares da Reserva Cisalpina, no município de Brasilândia, no Mato Grosso do Sul, onde a natureza está protegida pelos braços da Cesp e a consciência de outros, ainda que poucos, engajados cidadãos.
Mas a alegria dura só até às seis da manhã. Horário paulista. Porque a partir da aurora, com a chegada da balsa de Paulicéia-SP, a paz animal sossega e é hora de bater em retirada, tal qual o tuiuiú majestoso que disputa com a garça andeja a linha do horizonte, para o fundão dos pantanais.
O fluxo de veículos que cruza a rodovia Luigi Cantone, antiga MS-040, hoje BR-158, agora, é de hora em hora, e os animais retardatários, que espreguiçam-se mais demoradamente no leito da estrada – estes, estão até acostumados com o tilintar das pedras no casco dos veículos, batendo firme no chão essa hora, que transforma aos pouco o ambiente de paz, no terror de suas vidas.
Não, filhinho, não atravesse a pista! A estrada deixou de ser segura. Com o enchimento do lago da hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta (ex-Porto Primavera), a grande maioria das espécies que viviam numa região que abrange 2,5 mil km2 de área inundada, milhares deles foram recolhidos e soltos nessa reserva. Ali, uma exuberante fauna, desde cervos-do-pantanal, que são indicadores da qualidade do ambiente preservado em que vivem, até onças pardas, em um número assustador para a vizinhança local, tudo harmoniza-se e engrandece a humanidade do entorno. Entorno que, agora, grita e alerta para as consequências da liberação da ponte Mário Covas, que desenvolverá a região, mas irá causar uma agressão muito grande ao ecossistema. Situação que merece cautela. Por isso o pedido de um EIA-Rima para a liberação da ponte e estrada. Porque mesmo antes dela ser liberada e asfaltada já está causando morte na fauna. Com a inauguração da ponte, o trajeto será livre e permanente, quebrando o habitat e a rotina dos animais. Um massacre, podemos antever.
A velocidade dos carros não irá respeitar os passinhos miúdos de um preá ou o laço brando da sucuri pacholenta no desjejum da meia-tarde. Haverá quebra do equilíbrio ecológico.
Ongs como o Instituto Cisalpina, Econg e Apoena, de ambas as margens do rio Paraná se unem em defesa da vida e exigem velocidade máxima de 60 km/h, radar eletrônico, placas educativas de preservação ambiental, sinalização vertical, tubos subterrâneos para a travessia de animais, telas de proteção em determinados pontos como curvas e áreas inundáveis onde os animais fazem a travessia.
Há a necessidade urgente da implantação de Posto da Polícia Militar Ambiental na cabeceira da ponte para orientar, fiscalizar e coibir a caça e pesca predatória, tão comum na região e que crescerá com o fluxo de pessoas na região. Para os animais e a natureza não importa o que sentimos ou pensamos. Importa é o que fazemos.
Por isso, junte-se nessa luta. Posicione-se. Exija a realização de Estudos de Impacto Ambiental – EIA como condicionante para a liberação da licença de operação da ponte Mário Covas. Esse estudo terá força para garantir a sobrevivência da natureza nesse trecho da estrada, o mais novo Portal de Mato Grosso do Sul.
Carlos Alberto dos Santos Dutra é diretor-presidente do Instituto Cisalpina