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Zero alcool ao volante: medida de civilização

Beccaria, Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana de nascimento, reflete em sua obra que o Mundo no qual nasceu e viveu naqueles idos do século XVIII era profundamente assimétrico entre os indivíduos ao ponto de, ao contrário de  ter “… as vantagens da sociedade igualmente repartidas entre todos os seus membros… nota-se a tendência contínua de acumular no menor número os privilégios, o poder e a felicidade, para só deixar à maioria miséria e fraqueza”, pois que “… as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das paixões da minoria… e nunca a obra… que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim: todo o bem estar possível para a maioria.” No mínimo, magistral o ensinamento do grande mestre, tanto que, prólogo da sua obra, sobre esse ensinamento erige o corpo inteiro da denúncia e da insurgência contra a violência das penas então aplicadas, as quais, saciando a ira dos privilegiados, penitenciava os hipossuficientes, a esses negando o que mais ansiavam por inafastável direito, a Justiça.
Beccaria foi um dos arautos de um Mundo novo fundado na compaixão, na solidariedade e na equidade social. Seus ensinamentos, dos quais o Direito Criminal atual é caudatário, propiciou aos tribunais não só a punição das sentenças condenatórias, mas a remissão facultada pela progressão penal e, respeitante ao rito processual, a inversão do ônus da prova, a par do contraditório e da ampla defesa, em suma, –  porque senão mera ficção – o exercício, à plenitude, do Estado Democrático de Direito.
Estas referências a um grande luminar vêm a propósito de certa polêmica criada a partir de recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da chamada Lei Seca. A decisão da Alta Corte, ao reconhecer a constitucionalidade dessa Lei, foi mais adiante, considerando crime de perigo em abstrato o dirigir após a ingestão de bebida alcoólica, mesmo que a conduta não resulte dano concreto. E o que caracteriza o “perigo em abstrato”? Justamente a certeza, “ante facto”, da sua potencialidade de dano, aferida em base científica e nas regras da experiência comum, prospecção nada difícil sob a leitura das estatísticas que colocam o Brasil ponteiro em acidentes de trânsito com letalidade símile à de uma guerra civil.
Pressurosas no laborar na impunidade e nas práticas que tornam tênue a fronteira entre a civilização e a barbárie, vozes têm-se ouvido contra o rigor, tanto da Lei Seca, quanto do seu reconhecimento pelo STF, assim, também, contra o atual trâmite legislativo para adoção da tolerância zero de álcool ao volante. Tais vozes parecem ecoar os reclamos pela manutenção dos privilégios que levaram Beccaria a estipular no rol dos grandes crimes os que atentam contra a vida dos cidadãos porque exercício do “direito do mais forte… igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre” (Capitulo XXVII, “Dos atentados contra a segurança dos particulares e das violências”, obra citada).
Aplicados tais conceitos à realidade brasileira e ao que ela informa quanto ao transito, temos a situação dos motoristas alcoolizados que, pilhados nas “bltizs” ou nos acidentes de trânsito, negam-se ao exame do bafômetro e, assim, podem argüir que, à ocasião, estavam sóbrios. Esses condutores, para não incorrerem no crime de trânsito, se valem do instituto da chamada “não produção de prova negativa”, admitida em nossos Códigos e, ao que poderia parecer irônico, também na obra de Beccaria, entre os capítulos de IX a XII, nominados respectivamente, “Dos interrogatórios sugestivos”, “Dos juramentos” e, por último, “Da tortura”, quando o acusado, mesmo inocente, mas aterrorizado pela violência moral e física do suplício, se assumia culpado antes da sentença do juiz.
Contudo, em sendo um marco civilizatório, o benefício da “não produção de prova negativa” – em que o indivíduo se exculpa de produzi-la contra si – não deve premiar a aberração e constituir-se em proteção para condutas que ofendem o bem inalienável, que é a vida de alguém, como ocorre na rotina do trânsito em nosso país.
Notoriamente, a maioria dos motoristas que busca em juízo isentar-se da autoria do ato de perigo a que expôs as vítimas de seus desatinos está alojada nos estratos em que o dirigir embriagado ou irresponsavelmente pouco lhe pesa moral ou materialmente, o que faz oportunas as advertências de Beccaria: “Quereis prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja a Nação inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las”.

Helio Silva é advogado e economista