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Artigo

A Controversa tolerância

Confira o artigo do Jornal do Povo, deste sábado (21)

Confira o Artigo do Jornal do Povo, deste sábado (21) - Divulgação
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Apesar de ser uma obviedade, é sempre bom lembrar que muitos dos nossos comportamentos na fase adulta são reflexos de experiências obtidas na infância. Carregamos as marcas impregnadas na nossa “educação”, as quais acabam se refletindo até mesmo no comportamento e na formação do nosso caráter. Muitos de nossos atos são resultados da deturpação de valores, confundidos durante a infância, seja em ambientes de convívio social ou até mesmo no seio familiar. Prova disto são as inúmeras manifestações de crianças que trazem consigo a marca do preconceito velado, por exemplo, ao rejeitar outros colegas que possuem alguma diferença em relação ao padrão comumente estabelecido. Somos frutos do nosso tempo e da nossa história, quer queiramos ou não. 

Com base nesta premissa, tenho pensado a respeito de uma palavra muito em voga atualmente e, talvez por isso, controversa. Trata-se do termo tolerância. Afinal, como estamos repassando aos nossos infantes, enquanto adultos que somos, este importante valor? Qual tem sido minha contribuição para os que me são próximos e me veem como exemplo? Antes, convém que lancemos mão de uma questão prévia: o que entendo por tolerância? Devo ser tolerante diante de qualquer situação ou posso ser intolerante conforme a ocasião? Antes de qualquer análise, convém que tomemos nota do que corriqueiramente se compreende por tolerância. 

Evanildo Bechara, importante professor, gramático e filólogo brasileiro, define o termo tolerância como “capacidade de admitir que os outros possam pensar e agir de modo diferente”. O famigerado dicionário Aurélio, em sua longa definição, num determinado momento, afirma ser tolerância “a boa disposição dos que ouvem com paciência opiniões opostas às suas”. O que chama a atenção nas duas definições apresentadas não é a benevolência do interlocutor que, mesmo munido da verdade, condescende com a opinião erroneamente apresentada, mas sim sua postura de respeito diante da possibilidade do outro poder falar. Tal postura jamais deve ser renunciada. Trata-se da velha máxima de Voltaire: “Posso não concordar com uma única palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-la”.

Até aqui, tudo certo. O problema reside em querer associar a tolerância à racionalidade ou à sabedoria. A tolerância só tem razão de existir pela ignorância. Ignorância tanto de quem fala, quanto de quem escuta. E quando falo em ignorância, entendam como ignorância intelectual, emocional ou até mesmo comportamental. Sem julgamentos precipitados, é importante ressaltar que aqui me refiro à tolerância resignada, em outras palavras, àquela que somente absorve e não provoca a reflexão. Muitos são aqueles que ouvem discursos inflamados, vociferados e, por desconhecimento latente do que se aborda, passam a tomar como verdade irrefutável o que lhes foi apresentado. Ainda, muitos percebem a incompatibilidade ou incoerência gritante em determinados argumentos, destoantes da realidade, preconceituosos, oriundos de fontes sombrias ou maledicentes, e o que fazem? Absorvem e repassam o mesmo discurso, talvez de forma ainda mais intensa e acalorada. Este tipo de tolerância é, ao contrário do que se pensa, um terrível ataque à sabedoria.  

É certo que as paixões e as emoções nos fazem titubear diante de qualquer embate acalorado. E aí? Como fica a tolerância não resignada diante de tal situação? Pois bem. As crianças voltam outra vez à baila, como exemplo. Compreendam! Imagine a situação de uma criança, em sua tenra inocência, ao insistir em contrariar seus pais dizendo que não viu nenhuma cegonha entregar o seu irmãozinho em casa. Como proceder? Pegando na mão desta “criança”, com paciência e desprendimento, abandonando as vaidades do pseudointelectual, sóbrio e disposto a atingir a meta pretendida, a saber, a verdade, mesmo que variável. É preciso, junto desta “criança”, demonstrar a necessidade de adaptar o discurso, buscar novos vieses, novas soluções, entender que o que outrora era tido como verdade absoluta sofreu variações, que não somos donos da verdade e que somos passíveis de errar.  

Não é irrazoável afirmar que muitos de nós adultos ainda somos crianças. Inocentes e influenciados por tantos outros que se achegam e pretendem armar barracas em nossas fragilidades, utilizando de manobras e barganhas para nos ludibriar com falsas promessas e ideologias. Mas até quando aceitaremos que o ódio seja disseminado de forma indiscriminada e violenta por gente que se quer sabe distinguir ostracismo, pietismo e ufanismo. De tal modo que julgo salutar entender que “há crianças em todo lugar que vejo”, parafraseando e alterando a letra dos Titãs e, será necessário revisitar este jardim quase que diariamente, eliminando as ervas daninhas do ódio e do preconceito, e fazendo vicejar as belas flores do respeito e da tolerância não resignada. 

Por fim, reitero uma questão que pode nos levar à reflexão maior: como cessar o efeito cíclico de disseminação do ódio que temos acompanhado? Entendo que seja ensinando desde cedo às futuras gerações o que significa, de fato, ser tolerante. Compreendendo que tolerar não significa resignar e fugir ao debate. É importante ter a firme consciência de que tolerar significa tomar o outro pela mão e encaminhá-lo, assim como fazemos com a criança inocente, rumo às diversas possibilidades de verdade que se apresentam. Para tanto, primeiramente é fulcral compreender que não é possível atingir verdades absolutas sem obstinação, dedicação, vontade séria de conhecer e humildade para revisar as próprias certezas.  

*Devair Gonçalves Sanchez é mestre em filosofia e pedagogo. Atualmente, Especialista de Educação no Município de Três Lagoas.