A acessibilidade já não é mais um tema exclusivo ao setor da construção civil, arquitetura e urbanismo. O assunto é cada vez mais discutido com seriedade entre os mais diversos campos profissionais. De modo geral, trata-se de permitir às pessoas com deficiência, definitiva ou temporária, participarem de atividades que incluem o uso de produtos, serviços, obras e até mesmo os meios de comunicações e informações. Porém, na arquitetura e no urbanismo, a acessibilidade tem sido uma preocupação constante nos últimos anos. Incentivar a sociabilização familiar, proteger a saúde e a integridade física promovendo o seu bem-estar são alguns dos objetivos alcançados quando se leva em consideração a questão de acessibilidade nos projetos. Pensando em todas essas questões, o engenheiro civil Jary de Carvalho e Castro, e também presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado (Crea/MS), que esteve em Três Lagoas na segunda-feira para o lançamento do livro “Ir e Vir – Acessibilidade: Compromisso de cada um” de sua própria autoria, em entrevista ao Jornal do Povo falou pouco sobre a produção do livro, as motivações que o leva a lutar de forma voluntária pela causa e o cuidado pessoal com o tema.
Três Lagoas
?Calçada é o marco zero da acessibilidade?
O assunto é cada vez mais discutido com seriedade entre os mais diversos campos profissionais
JP: De veio a ideia de escrever esse livro?
Jary: Bom, creio que vem desde a minha infância e de todos os registros que tive na minha vida, mas eu pude dar forma mesmo a partir de 2009, quando comecei a trabalhar no Crea. Foi lá que eu consegui achar um solo pronto para começar a desenvolver esse trabalho sobre acessibilidade em Campo Grande e Mato Grosso do Sul. Foi quando começamos com uma comissão provisória para apontar debates sobre acessibilidade dentro do próprio Conselho até se tornar permanente, como um Fórum. Dentro de todas essas etapas fizemos várias reuniões, fiscalizações, desenvolvemos orientações, palestras, workshops, adquirimos conhecimentos de pessoas de outros Estados e países que inclusive, fui convidado para dar palestra em Portugal na Associação de Engenheiros em Lisboa e vi que o próximo passo seria inevitavelmente escrever o livro. Um dia me dei conta que eu já tinha esse conteúdo todo na minha cabeça, que bastava apenas parar e escreve-lo. E o processo foi assim, nas viagens de um trabalho e outro no decorrer deste ano, rabiscando os capítulos até chegar a um todo. Foram quatro meses de trabalho.
JP: Existe alguma abordagem especial na sua obra?
Jary: Sim, é um livro diferente. Ele não direcionado somente a engenheiros e arquitetos, eu levei o assunto para outras profissões também. Talvez, de uma formahumana da engenharia. Eu abordei o tema com dentistas, médicos, atletas, políticos e até mesmo com a imprensa, para saber o que anda acontecendo com relação à acessibilidade no Brasil. O livro não é somente regional, eu conversei com profissionais de várias regiões do país.
JP: Seria um plano geral sobre o tema?
Jary: Principalmente na preparação das cidades, para todos terem o direito de ir e vir, seja para trabalhar, estudar, se divertir, ou seja, ter uma vida normal, com acesso a todos os lugares. Eu considero a calçada com marco zero da acessibilidade porque, ao sair da sua casa é o primeiro elemento que você se depara. Então é por isso que a calçada deve estar sempre em boas condições para qualquer pessoa se deslocar, principalmente para pessoas cadeirantes ou de mobilidade reduzida. Outra população que está crescendo muito no Brasil nos últimos anos são os idosos e que também precisam dessa condição regular; os obesos também estão em condição de epidemia e que também precisam dessa observação com relação aos acessos. Ou seja, são vários pontos de vistas que precisam ser avaliados para serem levados às adaptações, pois estas pessoas precisam trabalhar e terem direitos à cidadania. É uma lei a ser cumprida.
JP: Em Mato Grosso do Sul existe algum outro setor profissional que destaca com relação à acessibilidade sem ser engenheiros ou arquitetos?
Jary: O curso de odontologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul hoje é uma boa referência, pois além de atenderem dentro do complexo estudantil, eles têm um centrinho que atende pessoas que não conseguem ir até o ponto de atendimento; vão buscar o paciente que tem deficiência em sua própria casa. E o tratamento dentário não é somente importante por questões de higiene bucal. É importante também para o bom funcionamento do coração, das articulações. Cito como referência, pois é outro setor profissional que nada tem a ver com engenharia, mas que se preocupa com essa questão. O empresariado privado também tem se tornado referência nos últimos anos. Muitos fazem questão de contratar pessoas com deficiência ou idosas para obter visões diferenciadas dentro da empresa. E com os muitos empresários que conversei,eles me apontaram que esses funcionários são os que menos faltam no trabalho e o que mais se mostram dispostos às atividades. São exemplos de superação para um todo. Todas essas questões também são abordadas no livro, pode-se dizer que uma radiografia geral.
JP: Como o senhor avalia a questão da acessibilidade em Mato Grosso do Sul ou mais precisamente, em Três Lagoas?
Jary: Eu trabalho com afinco há 15 anos sobre essa questão e posso dizer que vi melhoras relevantes em todo o Estado. As primeiras vezes que vim para Três Lagoas para fazer minhas primeiras fiscalizações, nos deparávamos com falta de rampas em calçadas e em estabelecimentos comerciais, tanto no setor público ou privado, sem corrimões adequados, ou seja, locais que causavam constrangimento para quem precisava de acesso e não tinha. Hoje existem normas que apontam que balcões precisam ter 80 centímetros, corrimões com padrões de altura, os banheiros têm que apresentar barras seguras e os dispositivos adequados para atender pedidos básicos de higiene. A cadeira de rodas tem que circular facilmente dentro deste ambiente e muitos lugares hoje, não só em Três Lagoas, mas no Estado todo, já apontou essas adequações. Isso também foi uma cobrança do Crea que por meio dessa iniciativa, começou a exigir de forma indireta outros empresários que viram exemplos seremcumpridos. E claro, com certeza se tornam um bom negócio, já que atrai também este público que também trabalha e querem estar integrados à sociedade. Tem que ser bom para todo mundo, quebrar paradigmas, pois este trabalho nunca terá fim.
JP: Quais são os principais desafios para garantir a acessibilidade?
Jary: Eu sempre parto das primícias com as calçadas. Se você observar o Brasil como um todo,têm vários problemas como de má conservação, execução errônea no momento da construção em não utilizar pisos corretos e até mesmo inclinações indevidas. A população em geral também falta com respeito quando vai realizar uma obra e coloca material de construção nas calçadas, ou quando se tem um comércio, invade as calçadas com cadeiras e mesas sem preocupação mínima com as pessoas que vão passar por ali. Hoje temos no Brasil mais de 30 mil pessoas que foram mortas atropeladas, que andavam na rua por falta de calçadas. Então eu bato sempre nessa tecla, as calçadas é o primeiro ponto de partida para garantir acessibilidade para todos, e isso não é referente somente para quem é deficiente ou tem alguma mobilidade reduzida. Para quem tem essas características, não preciso nem mencionar mais as dificuldades. Um degrau de 1 cm já se torna uma grande barreira. Para quem não acredita no que estou falando, tente andar em uma cadeira de rodas em volta da sua própria quadra para sentir na pele o que uma pessoa com deficiência enfrenta no dia a dia.
JP: O senhor nos disse que visitou outros paísese temos como exemploo Japão, onde as calçadas são de responsabilidade das prefeituras por isso elas são padronizadas. O senhor que seria uma boa solução para o nosso país?
Jary: Eu vejo com bons olhos as calçadas serem de responsabilidade das prefeituras. Eu estive na China e fui a duas cidades, Xangai e Pequim, e pude observar que lá é realizado esse procedimento, assim como na Europa e América Central também. As calçadas são padronizadas.A rua é feita juntamente com a sarjeta e imediatamente é feita a calçada padronizada. Só muda a forma de como é cobrado o recurso pelosos órgãos responsáveis, depende das leis aprovadas dentro de cada município, mas o método é eficiente e funcional em todos que adotam a causa. Quando a construção fica a gosto individual, acontecem todas essas diferenças e isso nunca foi bom para atender a acessibilidade de todos, de um bem comum. Acabam que utilizando pisos de materiais incorretos, sem a aplicação de pisos tátil e direcional para pessoas com deficiência visual. Não acho que seja obrigatório em toda a cidade, mas tem que obrigatoriamente ser implantado em locais que seja de interesse e necessidade comum. Tem que ser elaborado um estudo de quarteirão por quarteirão para que possa ser feito esse planejamento. Só é uma pena que a falta de planejamento esteja intrínseca na cultura brasileira, mas com certeza seria uma excelente solução para garantir esse direito de ir e vir para todos. Inclusive pagamos muito caro por não planejar e ou ter preguiça de planejar. Acredito que de imediato, pelo menos começasse uma discussão entre prefeitos e vereadores, já que são cobradas tantas taxas da população em geral.
JP: Como o senhor mesmo disse, que trabalha há mais de 15 anos sobre esse tema, que mudanças consegue notar em uma década com relação a acessibilidade?
Jary: Percebo muitas cidades que se preocupam com acessos nas calçadas, locais públicos que têm rampas e banheiro adequados, balcões na altura correta e até elevadores para esse fim. Mesmo que seja para atender uma pessoa só, não importa, é preciso pensar sempre nisso. Aqui em Mato Grosso do Sul, a cidade que posso dizer que é a melhor referência é Bonito. Foi a primeira cidade que fiscalizamos quando o Crea começou a exigir essas adequações e foi um lugar que aceitou de imediato as recomendações. Praticamente todas as pousadas que passei, por mais simples que seja, tem alguma adequação para pessoas deficientes. São poucas? Com certeza sim, mas já é percebe-se uma mudança, percebe-se a sensibilidade de quem pensa nesse público. Há dez anos não existia isso. Quem não tem contato com pessoas deficientes hoje já pensa melhor quando vê uma barra diferente no banheiro. E isso é muito positivo para um começo.
JP: Nós falamos da responsabilidade do poder público e qual seria a responsabilidade do setor privado?
Jary: Vejo como bom exemplo. A iniciativa privada dá um show de bola. Com relação ao poder público, não vou me referir a partidos e nem a pessoas, vou generalizar a política como um todo. Enquanto deveria ser deles a preocupação com acessibilidade, mesmo entendendo que não é fácil, porque não depende somente de uma pessoa, e sim de vários meios burocráticos que dificulta o processo desse direito. Já o setor privado, que é financeiramente independente, atende aos pedidos solicitados com mais eficiência. Eu como representante do Crea mesmo, posso dizer que se o conselho quiser fazer alguma adaptação no nosso prédio, é preciso de licitações e muitas outras coisas. Já eu, como pessoa física, se tenho condições financeiras, posso realizar prontamente qualquer adaptação. Só gostaria que a classe pública tivesse a mesma visão e começasse pelo menos um debate com mais visibilidade.
JP: De onde vem toda essa vontade de garantir esse direito de acessibilidade?
Jary: Fui criadoem um lar de formação espiritual muito diversa, não tenho exemplo só de uma religião, mas sim de várias e foi isso que me faz sempre pensar que eu tenho uma missão a cumprir. Tenho uma missão como engenheiro e missão como ser humano, foi quando resolvi levar esse assunto à frente. Onde quer que eu vá e levo o debate, depois de certo tempo, eu volto e vejo que aconteceram mudanças. E isso também me motiva. Eu ando pelo Estado o ano inteiro e sempre toco nesse assunto por onde passo, para que essa brasa sempre esteja acesa. É o meu meio de trabalhar como voluntário para a sociedade. É um trabalho diário e incessante.
*O livro é distribuído de forma gratuita por onde o engenheiro passa e realiza palestras.O material também está disponível gratuitamente para download nosite do próprio conselho: http://www.creams.org.br/