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Três Lagoas

?Enfrentamos uma pandemia de uso de bebida alcoólica e entorpecentes pelos jovens?, diz promotora

Na entrevista especial da semana, o Jornal do Povo conversou com Ana Cristina Carneiro Dias

Promotora Ana Cristina Carneiro Dias -
Promotora Ana Cristina Carneiro Dias -
Ela chegou em Três Lagoas em 2004. Assumiu a 4ª Promotoria de Justiça, onde atua até hoje. Entre as suas funções está a de proteção as crianças e os jovens, além de garantir os direitos constitucionais dos cidadãos. Pelos relevantes trabalhos que tem feito em Três Lagoas, foi homenageada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, em maio desse ano. Estamos falando da promotora da Infância e Juventude de Três Lagoas, Ana Cristina Carneiro Dias, que é a entrevista dessa semana do Jornal do Povo.

Na entrevista, a promotora fala dos desafios de proteger as crianças e jovens , afirma que a sociedade vive uma pandemia de uso de bebida alcoólica e entorpecentes pelos jovens e pelos pais desses jovens. Ana Cristina fala também do trabalho na área da Cidadania, e dos desafios à frente do Ministério Público. 

Jornal do Povo– Quais são os principais problemas que chegam até a Promotoria?
Ana Cristina Carneiro Dias- Trabalhamos com três grandes desafios. Primeiro, pedir ao Judiciário aplicação de medida socioeducativa aos adolescentes infratores, cobrando, ademais, do Estado melhorias neste processo de ressocialização. Segundo, proteger crianças e adolescentes em situação de risco, a maioria delas enquanto aos cuidados da família biológica. E, por último, atender aos anseios da população usuária do SUS.

JP- O Ministério Público tem conseguido contribuir para resolver ou minimizar esses problemas, ou se vê de mãos atadas diante de algumas situações?
Ana Cristina -O Ministério Público ganhou status constitucional de protetor da sociedade e estamos fazendo exatamente isso. Porém, estamos nos sentindo impotentes diante de alguns desafios. Enfrentamos uma pandemia de uso de bebida alcoólica e entorpecentes pelos jovens e pelos pais desses jovens. Precisamos de políticas públicas voltadas à prevenção e nesse ponto, o Município precisa caminhar mais. Há muito pouco no campo do esporte, do lazer, da profissionalização, do emprego, etc. Outro ponto preocupante é que não temos em Três Lagoas um serviço específico para o tratamento de crianças e adolescentes usuárias de drogas e, por isso, dependemos de parceria do Município com unidades de internação de outros locais, o que reduz bastante a possibilidade de sucesso do tratamento. As gestantes usuárias de drogas também têm nos preocupado bastante, pois, na maioria das vezes, não aceitam tratamento, se recusam a fazer o pré-natal e fogem da rede socioassistencial que se empenha em ajudá-las e orientá-las, e assim elas causam sérios prejuízos à criança que está em formação em seu ventre. Esses são alguns dos desafios diários que enfrentamos e sempre buscamos soluções com foco no melhor interesse da criança e do adolescente, que são pessoas em formação e serão adultos socialmente ajustados ou não.

JP- Como à senhora analisa a situação de crianças e adolescentes envolvidos com a criminalidade, com o uso de drogas, entre outras questões em Três Lagoas? É preocupante essa situação? É possível revertê-la?
Ana Cristina– É bastante preocupante. Os pais, com a desculpa de que precisam trabalhar, não dão seu tempo ao filho, não dão exemplos, não participam efetivamente da vida e das dificuldades enfrentadas pelo filho, que, por sua vez, não encontra em sua família estrutura suficiente para lidar com a frustração, com a desilusão e os obstáculos que toda pessoa tem que enfrentar. Faltam afeto e exemplo. Assim, essa criança e esse adolescente acabam encontrando “apoio” na rua, em maus exemplos, em pessoas que muitas vezes querem levá-lo a servir uma vida desajustada e voltada ao vício e à criminalidade. O jovem está vendo no traficante um exemplo a ser seguido, um exemplo de pessoa “bem sucedida”, que leva uma vida “fácil” e com algum poder nas mãos. E sem o apoio e empenho da família, que não tem um vínculo sólido formado com esses jovens, é muito difícil ensinar-lhes bons valores, convencê-los a ter uma vida honesta e fazer com que eles tenham sonhos e perspectiva de futuro.

JP- Os problemas que mais aparecem na Promotoria relacionados a essa questão, envolvem pessoas de qual tipo de classe social?
Ana Cristina– Na grande maioria são pessoas de baixa renda, mas essa não é uma regra. Há crianças e adolescentes que praticam atos infracionais e se envolvem com álcool e drogas em todas as classes sociais. O que muitas vezes ocorre é que nas classes economicamente mais favorecidas há uma tendência a esconder esses fatos e procurar ajuda em instituições particulares, o que acaba evitando que muitos casos cheguem ao conhecimento das autoridades públicas. Outro fator que deve ser levado em consideração é que as pessoas de baixa renda são a maioria em nossa sociedade e, por isso, a incidência é naturalmente maior.

JP- A administração municipal tem projetos, tem feito a sua parte para contribuir e evitar esses problemas?
Ana Cristina- Sim, nossa cidade tem projetos sociais e uma rede socioassistencial para atender crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social ou envolvidas em vícios e com a criminalidade. No entanto, esses órgãos não são suficientes para enfrentar toda problemática vivenciada por nosso município. Ainda há muito, repito, muito o que fazer e melhorar.

JP- Mudando de assunto, falando um pouco do trabalho na área da cidadania, reclamações relacionadas ao atendimento na saúde em Três Lagoas, continuam chegando à Promotoria, e quais são os principais?
Ana Cristina -Sim, nós temos uma média mensal de atendimento ao público de 74 pessoas, sendo que a grande maioria vem formular reclamação na área da saúde. Esses atendimentos da área da saúde são, na maioria dos casos, referentes à omissão do Município ou do Estado (grande maioria) em procedimentos médicos, como consultas, exames, procedimentos cirúrgicos, etc. Também há casos de falta de vagas em UTI.

JP- Como à senhora analisa o atendimento da saúde em Três Lagoas?
Ana- Cristina- Em nossa Promotoria atendemos apenas casos do SUS, pois a rede particular e de planos de saúde são casos de direito do consumidor, afetos à 3ª Promotoria de Justiça. A saúde pública de Três Lagoas costuma atender ao protocolo de atendimento do SUS, dentro de padrões de legalidade, mas a falta de estrutura local em muitas áreas acaba gerando problemas para a administração e para a população local. Atualmente, enfrentamos mais problemas na área da oftalmologia, ortopedia e neurologia, pois o atendimento local é deficitário ou não existe nessas áreas. 

JP-. Como analisa o fato dos médicos não cumprirem a carga horária de trabalho nas unidades de saúde. A promotoria tem analisado essa situação?
Ana Cristina-Sim, desde 2010 temos um Inquérito Civil que investiga os plantões irregulares dos médicos que atendem na rede pública. Apuramos que muitos médicos não permanecem na unidade de saúde durante todo o período do plantão e muitas vezes ficam de plantão em mais de uma unidade de saúde ao mesmo tempo, o que é uma afronta aos direitos da população e ainda implica em recebimento indevido de uma verba pública. Para esses médicos, foi ofertada a possibilidade de assinarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que é um acordo firmado com o Ministério Público para sanar a irregularidade, ou seja, devolver os valores recebidos indevidamente. Neste documento os médicos ainda se comprometem a não mais praticarem a irregularidade, sob pena de multa. Os médicos irregulares que não aceitarem assinar o TAC responderão a processo judicial.

JP-  Para finalizarmos, a senhora agora é mãe, mudou a maneira de a senhora enxergar os problemas relacionados às crianças, de como a sociedade se comporta diante de tantos problemas?
Ana- Cristina -Só aumentou a minha vontade, e olha que não era pouca, de consertar aquilo que me compete. A maneira de enxergar e enfrentar os problemas continua do mesmo jeito. Sendo bem sincera, eu não gostava de ouvir, quando ainda não era mãe, de que quando me tornasse mãe iria ver as coisas diferentes. Diferentes por quê? Antes e hoje tenho o mesmo sentimento de querer proteger a criança e o adolescente, mesmo que seja contra os próprios pais biológicos que, pela lei brasileira, não são donos dos seus filhos e não podem fazer com eles o que bem entendem. É dever dos pais garantir aos filhos o cuidado e o afeto necessários para uma formação biopsicossocial saudável, e isso implica em abrir mão de algumas coisas na vida pessoal. Quem não está disposto ou, por qualquer motivo, não consegue desempenhar satisfatoriamente a maternidade e a paternidade não deveria ter filhos.