Os números são assustadores: uma mulher é morta a cada seis horas no Brasil. No ano passado 1,4 mil mulheres foram vítimas do feminicídio no país, o maior número registrado desde que a Lei de Feminicídio entrou em vigor, em 2015. Em Mato Grosso do Sul, o Dossiê Feminicídio do Ministério Público Estadual (MPMS) mostra que 161 mulheres foram vítimas de feminicídio, sendo que 37 resultaram em morte e 124 foram tentados. O que chama atenção: em 73,3% dos casos as vítimas não possuíam medida protetiva de urgência e 37,1% das vítimas tinham idade entre 20 e 29 anos. Este ano, somente nos primeiros quatro meses, 59 mulheres foram vítimas da violência doméstica, sendo oito vítimas fatais. Esses dados de 2023 já demonstram uma curva em ascendência, ou seja, um aumento em relação ao ano passado.
Nesta semana, em alusão ao Dia Estadual de Combate ao Feminicídio, o MPMS, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Criminais e do Controle Externo da Atividade Policial (CAOCRIM) e do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão, dos Direitos Humanos e das Pessoas com Deficiência (CAODH), lançou a campanha “Seu silêncio pode matar você”.
Uma iniciativa para sensibilizar a sociedade sul-mato-grossense sobre os altos índices de feminicídio e de violência doméstica e familiar contra a mulher no Estado. A campanha mobiliza também os Centros de Apoio das Promotorias de Justiça, o Grupo de Atuação Especial dos Promotores de Justiça do Tribunal do Júri (Nojúri), os Núcleos de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Nevid), da Cidadania (Nuci) e de Apoio às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais Violentos (Navit).
A promotora de Justiça e vice-presidente da Associação Sul-mato-grossense dos Membros do Ministério Público (ASMMP), Clarissa Carlotto Torres, está à frente desse trabalho e aceitou o convite do Grupo RCN para uma entrevista especial sobre o tema. A promotora esclareceu pontos importantes e que ajudam a sociedade a entender melhor esse grave problema social.
O Monitor da Violência e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2022 (FBSP), apontaram uma triste realidade em Mato Grosso do Sul: o Estado lidera o ranking nacional com a maior taxa de assassinatos de mulheres, com 8,3 a cada 100 mil mulheres, e está entre os três Estados com maior número de feminicídios: 2,6 mortes a cada 100 mil mulheres. Diante desse cenário, a senhora acredita que esses números da violência se devem às denúncias ou os agressores estão mais crueis?
Clarissa Torres – A nenhuma coisa, nem outra. A violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo o feminicídio o último degrau na escalada da violência, encontra suas raízes em nossa cultura, pois nossa sociedade ainda cultiva valores e pensamentos que incentivam a violência contra a mulher. Infelizmente, ainda hoje, em pleno século XXI, nos deparamos com atitudes, comportamentos, e pensamentos que reforçam a desigualdade entre homens e mulheres, onde o mais forte domina o mais fraco, estando as mulheres, por óbvio, na última posição. Dentro dessa ideia ainda “parece natural” o controle, a posse, a violência psicológica, a violência física e a morte de uma mulher. Enquanto não desconstruirmos esse pensamento social, o que acontecerá com verdadeira reflexão sobre os nossos papeis, enquanto seres humanos, os números continuarão a crescer.
Mato Grosso do Sul lidera o ranking nacional de casos de feminicídio. Como entender essa realidade?
Clarissa Torres- Duas questões precisam ser aqui analisadas: a primeira, diz respeito à nossa construção sociocultural. Nosso Estado tem enraizada a ideia de superioridade masculina, em detrimento da feminina, e isso repercute nos números relativos à violência doméstica e familiar contra a mulher, e também nos casos de feminicídio. Enquanto não mudarmos o pensamento coletivo sobre a importância da igualdade plena, possivelmente, continuaremos aparecendo nesse triste ranking. A segunda, está na histórica atuação do Estado na defesa da mulher vítima de violência doméstica. O MS, reconhecidamente, tem feito um trabalho importante, com campanhas educativas e políticas públicas voltadas para a prevenção e combate à violência. Para se ter uma ideia, a primeira Casa da Mulher Brasileira foi instalada em Campo Grande, justamente pelos nossos índices de violência e, desde então, vem realizando um trabalho de excelência. Todo esse trabalho permite que o Estado, através da atuação da Polícia Civil, tenha condições de melhor identificar os feminicídios, daí porque estamos, atualmente, liderando o ranking nacional.
E como está a atuação do Ministério Público Estadual para contribuir com a redução desses índices?
Clarissa Torres-O Ministério Público tem por missão constitucional zelar pelos interesses da sociedade, podendo, em razão disso, atuar em diversas frentes. Assim, desenvolvemos inúmeros projetos, a exemplo deste em alusão ao Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. Ainda somos o titular da ação penal, e, assim, processamos criminalmente os autores de violência, sendo essa atuação importantíssima para darmos a resposta que a sociedade espera, que é a punição dos autores de violência. Objetivamente, cabe ao MP, para a proteção das vítimas, importantes ações. Primeiro, atendimento direto às vítimas, ajuizamento de pedidos de MPU’s (Medidas Protetivas de Urgência), pedidos de prisão, de monitoramento eletrônico por tornozeleira, pedidos de busca e apreensão de armas de fogo, fiscalização de entidades de atendimento e acolhimento de vítimas. Segundo, denunciar e processar os crimes cometidos com violência doméstica e feminicídio. E, por último atuamos na prevenção geral, com campanhas, palestras, participação em grupos de estudo e de trabalho como forma de conscientização e prevenção de novos delitos.
Qual é a importância das medidas protetivas para evitar esse tipo de situação?
Clarissa Torres- Nós batemos muito em cima da ideia de que a medida protetiva de urgência realmente salva vidas. Se olharmos os dados que temos hoje a respeito da quantidade de feminicídios e as medidas protetivas de urgência, nós verificaremos que 84% das mulheres que foram vítimas de feminicídio em 2022, não possuíam medida protetiva de urgência. É um instrumento previsto na Lei Maria da Penha consistente numa ordem de restrição ao autor (a) da agressão e, realmente, quando é bem fiscalizado, o resultado é proteção da mulher. Nossa campanha visa provocar uma reflexão na sociedade sul-mato-grossense sobre a importância de desmistificarmos alguns pensamentos sociais, especialmente aquele de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Ainda hoje nós vemos situações de mulheres que sofrem violência e muitas pessoas do meio social delas sabem por que fazem parte do círculo familiar, e ainda há uma tendência de se tratar o problema como algo da esfera privada dessa família, especialmente porque a violência contra a mulher é algo extremamente complexo. São inúmeras razões que levam a mulher a se manter em um relacionamento abusivo. E nós queremos mostrar à sociedade que este grande problema, essa chaga social, deve ser encarada por todos. Não adianta as pessoas ligarem para a polícia quando elas escutam barulho na frente da casa, quando há som alto do vizinho. E, pensarem duas vezes, e não ligar para a polícia, quando a mulher está sofrendo violência! É isso que a gente ainda vê. A gente quer mostrar para a sociedade que a violência contra a mulher não é apenas um problema do Estado, ela também repercute na esfera social.