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A Era do Conhecimento de hoje apoia-se sobre os ombros de gigantes do passado

Leia o artigo do membro do Conselho Estadual de Educação do Paraná, Jacir J. Venturi

Jacir J. Venturi foi professor e gestor da Educação Básica e do Ensino Superior. | Foto: Divulgação/Redes sociais
Jacir J. Venturi foi professor e gestor da Educação Básica e do Ensino Superior. | Foto: Divulgação/Redes sociais

Cada geração ergueu novas estruturas sobre fundações sólidas, legadas pelos nossos antepassados. A era do conhecimento, que atualmente experimentamos, finca suas raízes em marcos históricos notáveis, entre os quais destacam-se dois colossos do saber: a lendária Biblioteca de Alexandria e a revolucionária imprensa de Gutenberg.

A Biblioteca de Alexandria, precursora do conceito moderno de universidade, resplandeceu como um imponente farol de conhecimento entre o século III a.C. e o século IV d.C. Guardava em seus 700 mil rolos de papiro e pergaminho o cerne do saber da Antiguidade, com a audaciosa missão de reunir um exemplar de todos os manuscritos existentes na face da Terra. Porém, seu acervo era privilégio de um seleto e conspícuo grupo de sábios, poetas e matemáticos. Sua destruição, carregada de simbolismo, é considerada por muitos como a maior tragédia da história da ciência e da cultura.
Até a metade do século XV, a transmissão escrita do saber no ocidente era em boa parte limitada aos monges copistas dispersos por algumas dezenas de mosteiros e universidades.

Foi nesse contexto que Johann Gutenberg, um engenhoso ourives alemão, mudou o curso da história ao criar a tipografia por volta de 1440, em Mainz, Alemanha (onde se pode visitar o Museu de Gutenberg com réplicas de alguns artefatos históricos – vale a pena a visita!). A prensa de tipos móveis provocou uma transformação monumental, moldando a Era da Renascença e empoderando o Iluminismo, a Reforma Protestante e a Revolução Científica, aclamada por muitos como a maior revolução tecnológica do milênio. Foi ela que democratizou o conhecimento, viabilizando a produção em escala de livros e jornais.

Na Europa renascentista, com uma população estimada em 50 milhões de habitantes, apenas 15% eram alfabetizados, devido à escassez de livros. Contudo, a invenção de Gutenberg alterou profundamente esse panorama, dobrando o número de leitores europeus em poucos anos. Por volta de 1500, já circulavam meio milhão de livros pelo continente.

Ironicamente, a pesquisa realizada pela Retratos da Leitura no Brasil de 2024, amplamente reconhecida por sua credibilidade, afere que na população adulta, pela primeira vez, o número de leitores se inferioriza ao número de não leitores (47% contra 53%, respectivamente). É considerado não leitor aquele adulto que não leu em 2024 sequer um único livro, nem mesmo aquele com poucas dezenas de páginas. Nos últimos 14 anos, 11 milhões de pessoas se afastaram por completo dos livros impressos ou digitais, e boa parte delas alega ter perdido o interesse e prefere se dedicar às telas.

E isso ocorre, paradoxalmente, na era digital, sendo que jamais o acesso ao saber e à pesquisa foi tão democrático, uma vez que, em questão de segundos, mediante um simples teclado ou comando de voz, é possível acessar conteúdos de praticamente qualquer área do conhecimento, inclusive com contextualização, aplicação e exemplos por meio das ferramentas de inteligência artificial.

Hoje, a internet e as mídias multimodais disponibilizam conteúdos técnicos e pedagógicos com muita didática, estética e dinamismo, incluindo animações 3D, mas é imperativo também reconhecer que grande parte dos dados presentes na web é fútil ou perniciosa. Quando estudante nos anos 1960, recordo-me de uma comunicação escrita sóbria, para não dizer sisuda; os livros, então dispendiosos, eram monocromáticos e com ilustrações contidas, além de textos densos.

Um estudo da Universidade de Harvard reforça o que é praticamente um consenso na neurociência: o uso excessivo de dispositivos digitais compromete áreas cerebrais como o córtex pré-frontal, responsável pela atenção e pela tomada de decisões. O impacto das redes sociais e de um conteúdo digital superficial na saúde mental e na capacidade cognitiva das pessoas fez com que a expressão brain rot (cérebro deteriorado) fosse escolhida como a palavra do ano de 2024 pelo Dicionário Oxford. Ela descreve a deterioração do estado mental devido ao consumo excessivo de material online trivial, privando o usuário dos benefícios de enfrentar tarefas mais complexas e envolventes, capazes de turbinar os neurônios e cuidar da saúde mental, minimizando-se os riscos de doenças degenerativas.

Em sua autobiografia (Código-fonte: como tudo começou), lançada em 2025, Bill Gates comenta que desde jovem costumava se refugiar em seu quarto, imerso em livros e reflexões — práticas que moldaram a sua capacidade analítica e visão estratégica. Ele hoje expressa preocupação sobre as novas gerações por passarem muitas horas diárias em atividades digitais.

Estudar, de forma profunda e eficaz, ainda exige um espaço silente, uma mesa e uma cadeira. Como dizia, com graça e sotaque alemão, um venerável professor de Matemática: “O aprendizado entra ‘pelo bunda’ e sobe ao cérebro.”
Apesar da abundância de recursos tecnológicos e da ludicidade didática, uma verdade permanece imutável: o aprendizado consistente e duradouro requer autodisciplina, esforço e introspecção.

Para alcançar os píncaros do saber, recorro à analogia do Cabo do Bojador, que tal qual o Cabo da Boa Esperança foram símbolos de superação na tradição portuguesa, como bem eternizou Fernando Pessoa: “Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor.” E há êxtase. Há conquista. A dor transfigura-se em um doce sabor — o sabor do saber.

*Jacir J. Venturi, diretor de escolas e professor. Autor dos livros Da Sabedoria Clássica à Popular (em dois volumes); Cônicas e Quádricas; Álgebra Vetorial e Geometria Analítica (dispostos gratuitamente em www.geometriaanalitica.com.br).