Mato Grosso do Sul registrou um aumento no número de transplantes realizados em 2024, mas a demanda por órgãos e tecidos ainda desafia o sistema estadual de saúde.
Dados da Secretaria Estadual de Saúde apontam que, em 2023, foram realizados 29 transplantes de rim e 265 de córnea. No ano passado, esses números passaram para 28 transplantes de rim, 12 de fígado e 278 de córnea. E, agora em 2025, já foram contabilizados 4 transplantes de rim, 11 de fígado e 74 de córnea. Apesar do crescimento nas cirurgias, o número de doações ainda precisa avançar. Em 2024, foram registradas 243 doações de córneas e 40 de órgãos sólidos.
No terceiro quadrimestre, os números ficaram em 102 doações de córneas e oito de órgãos. Além disso, órgãos captados no estado e não utilizados localmente foram encaminhados para a Central Nacional de Transplantes, em Brasília, como foi o caso de um coração e 11 rins enviados para pacientes em outros estados.
Em Mato Grosso do Sul o receptor Carlos Alberto Rezende, conhecido como “Professor Carlão”, celebra quase dez anos do seu transplante, após ser diagnosticado, em 2015, com Aplasia Medular Severa – doença rara da medula óssea em que ocorre a diminuição da produção das células sanguíneas. Ele ficou por um ano na fila de transplante e, hoje, é um dos grandes incentivadores da doação de órgãos, participando ativamente das discussões sobre as políticas públicas para o setor da saúde e o transplante de órgãos e tecidos no estado e no país.
Biomédico, professor de biologia e presidente do Instituto Sangue Bom, Professor Carlão, conversou com nossa reportagem.
Como o senhor avalia o atual cenário na rede de transplantes no estado?
PROFESSOR CARLÃO Nós vamos ter um momento muito interessante, peculiar, por determinação do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde e a nossa Secretaria de Estado de Saúde já criou um grupo de trabalho para montar e elaborar um plano estadual de transplantes por doação. Isso porque existem normas técnicas, regras e necessidades para que se possa habilitar uma determinada unidade hospitalar a realizar transplantes para resolver o gargalo que existe e que nos deixa mais preocupados. E eu falo em preocupação porque, mesmo tendo essa manifestação por determinação do Sistema Nacional, para uma ação imediata da Secretaria de Estado de Saúde com esse grupo de trabalho, visando melhorar essas condições, o que nos preocupa hoje aqui em Mato Grosso do Sul é a relação entre a Santa Casa de Campo Grande, que é o hospital que mais realiza transplante de rim, por exemplo, com o poder público e as equipes médicas. No ano passado, em dois mil e vinte e quatro, foram realizados durante todo o ano um total de vinte e oito transplantes de rim. E, neste ano, apenas quatro foram realizados, na unidade. Já em contrapartida, nós temos o Hospital do Pêfigo que esttá com o transplante de fígado. Em dois mil e vinte e quatro, durante o ano todo, o hospital realizou doze transplantes e, neste ano, já foram onze transplantes de fígado realizados. Então, o sistema funciona.
E nesse contexto, é possível retomar os transplantes de rim? Afinal, a maior fila de espera por doadores é de pacientes renais.
PROFESSOR CARLÃO Eu acho que passando por esse gargalho, esse problema que nós temos ali na Santa Casa de Campo Grande, que é referência no estado, eu acho que as equipes médicas e técnicas podem se ajustar e voltar a acelerar esse processo de transplantes. E isso nos assusta muito, porque enquanto a Santa Casa não se entende com a prefeitura, com o Governo do Estado, sobre a contratualização do SUS, serviços como o de transplante de rim. É importante esclarecer que quando os órgãos aparecem para serem transplantados, acabam ofertados para outros estados. Essa é uma realidade atual. E, por isso, o principal realizador de transplante hoje aqui no estado é o hospital São Julião, que tem um serviço de excelência. O número de transplante de córnea realmente vem se mantendo e vem crescendo, mas ainda estamos longe do patamar do que já realizamos no passado.
E quantas córneas têm sido transplantadas no estado?
PROFESSOR CARLÃO No ano passado, em 2024, foram duzentos e setenta e oito transplantes e, desde janeiro deste ano, já realizamos oficialmente setenta e um transplantes. Então, esse grupo de trabalho que a Secretaria de Estado elabora, por determinação do Sistema Nacional, exatamente visa melhorar todo esse serviço, esse aparato de apoio, de logística para a realização dos transplantes no nosso estado.
Mas a gente precisa também trabalhar essa questão da conscientização da população, né professor? É tão simples ser um doador de órgãos. Mas ainda há muitos entraves na hora da doação, junto aos familiares. O que poderia ser feito para aumentar ainda mais o número de doadores?
PROFESSOR CARLÃO A lei anterior previa que o cidadão poderia colocar no documento de identidade que era doador de órgãos, assim ele manifestava o seu interesse em ser doador. Mas teve pouca efetividade porque mesmo assim, a família pode negar esse gesto. Por isso, hoje a conscientização é feita junto às famílias, o que ao meu ver é mais interessante. E é importante que as pessoas manifestem a vontade de ser um doador para a sua família. Se é casado, falar com a esposa, por exemplo, falar com o companheiro, a companheira para estão prejudicados que essa doação possa ser mais efetiva. É claro que a dor da perda é uma dor dura, mas existe dentro da coordenadoria, dentro dos hospitais transplantadores, um grupo específico pra fazer essa abordagem. São profissionais treinados e sensíveis a esse momento difícil que os familiares enfrentam.
Qual a taxa de familiares que não aceitam fazer a doação de órgãos?
PROFESSOR CARLÃO Infelizmente essa taxa é alta. A média de negativa das famílias no país é acima de quarenta por cento. E em Mato Grosso do Sul é ainda maior esssa negativa para a doação dos órgãos. A Associação Brasileira de Transplantados, da qual faço parte, sou diretor regional Centro-Oeste, tem trabalhado junto aos notários, que são os donos de cartórios, e elaborou um documento virtual gratuito, que já está em vigência, onde a pessoa manifesta o desejo de doar órgãos. O documento firmado em cartório é gratuito e o futuro doador já entrega esse documento para a família.
Como surgiu esse trabalho que tem conseguido aumentar o número de doadores no estado?
PROFESSOR CARLÃO Em relação à conscientização, é um trabalho que a gente faz incansavelmente com o Instituto Sangue Bom junto à sociedade. O instituto foi criado em dois mil e quinze no leito do hospital, quando eu precisei de sangue e nem sabia ainda a doença que eu tinha. Só sabia que precisava de um transplante efetivo para a minha salvação. E cheguei até aqui. Nós fechamos, até agora, cinco mil e trezentas ações realizadas nestes quase dez anos. Apenas nem janeiro deste ano o Instituto Sangue Bom realizou quarenta e seis ações. Em fevereiro, foram quarenta e duas ações. E, agora em maço, já foram trinta e duas ações. Nós queremos conclamar a população que realmente seja solidária nesse aspecto. A gente faz muito trabalho de conscientização, somos parceiros do Governo do Estado, do Hemosul, da Central Estadual de Transplantes pra fazer exatamente isso, para tocar o coração das pessoas. Porque eu sou transplantado de medula e sei o quão grande é um pequeno gesto.