Julio César Da Silva Lima cresceu na comunidade do Jacaré, Zona Norte do Rio de Janeiro, e desde pequeno cultiva uma paixão pela moda. “Aos 10 ou 12 anos, comecei a olhar para esse universo e o via como um elo que unia várias esferas”, conta o sócio fundador da Jacaré Moda, uma produtora de casting criada no mesmo bairro com o objetivo de difundir moda e uma ideia de beleza que vai além dos estereótipos.
Muito interessado no universo das modelos, Julio absorvia a moda por meio de programas de televisão nos anos 1980 e, durante esse período, passou a sentir o desejo de provar que em sua região também existia informação de moda e beleza. “Machucava escutar as pessoas falando da Rocinha e do Vidigal, mas nunca do Jacaré”, conta. “Quando alguém falava, era sobre as operações policiais.”
Até os anos 1990, a maior parte da comunidade era empregada por confecções de roupas estabelecidas na região, porém, com a entrada do Plano Collor, essas empresas fecharam. “Uma quantidade enorme de costureiras ficou desempregada e sem seus direitos”, lembra Julio. “Os bandidos invadiram as fábricas, levaram as máquinas e elas passaram a trabalhar em suas casas, criando miniconfecções”, diz. “Depois, montaram pequenas butiques e iniciaram o primeiro centro comercial do Jacaré, com uma moda interpretada com as referências que recebiam nas grandes confecções”, explica. “Quando olhei para isso, percebi que a moda estava crescendo ali dentro.”
“Machucava escutar as pessoas falando da Rocinha e do Vidigal, mas nunca do Jacaré” – Julio César da Silva Lima
No mesmo período, surgiu uma oportunidade de emprego e as coisas tomaram outro rumo. “Fui trabalhar como porteiro em um prédio da Zona Sul e um dia o faxineiro faltou. Aí me pediram que ajudasse com a retirada do lixo”, conta. “Lá encontrei várias revistas de moda. Eu nunca tinha tido contato com aquilo. Costumava assistir flashes de reportagem na TV de eventos como Fashion Rio e SPFW. Via as histórias de Yves Saint Laurent e Christian Lacroix, mas sabia muito pouco e na época a internet praticamente não existia.” Julio passou então a coletar das revistas as suas informações.
“Vi que a beleza das garotas fotografadas também estava nas mulheres da comunidade”, diz. “Pensei que, se elas recebessem o tratamento certo pelas mãos de profissionais, poderiam se transformar em grandes tops e decidi que esse era o caminho por onde iria ressaltar o nome do Jacarezinho.”
Trabalhando de maneira independente, Julio realizou desfiles e workshops de moda e beleza na comunidade, mas não conseguia ampliar o projeto, até que, em 2014, conheceu Clariza Rosa, uma de suas sócias. “Estava terminando comunicação na PUC, tinha trabalhado em agências de publicidade e queria fazer algo com as comunidades de periferia”, conta ela.
“Morei na favela até os 13 anos e sempre tive vontade de retornar para trazer um pouco do que aprendi. Afinal tinha circulado por muitos lugares, conhecido pessoas, morei fora do país e sei das barreiras que mulheres negras periféricas encontram nesses caminhos”, afirma Clariza. Ao lado do amigo Renan Kvacek, começou a procurar projetos até que Renan conheceu Julio César e tudo começou. “Na primeira conversa, vi que ele tinha uma visão mais tradicional de moda, que não era a nossa ideia inicial, mas decidimos nos juntar mesmo assim”, recorda ela.
“Renan tinha o know-how do design, eu de branding e estratégia, e juntos chamamos outras pessoas, como Lucas Rodrigues, para marketing e produção executiva, e Helena Gusmão, que coordena os castings, entre outros.” Em 2015, eles organizaram o desfile A Mais Bela entre Elas, que funcionou como um concurso. “A ganhadora fecharia um contrato com a Way, em São Paulo, e nós esquematizamos tudo”, explica Clariza. “Iríamos realizar apenas esse evento, mas durante o processo vimos que era possível evoluir.” Começava ali, oficialmente, a Jacaré Moda.
Moda Plural
Com a repaginada, a Jacaré Moda se estruturou, estendeu a atuação e passou a trabalhar com produção fotográfica e audiovisual. “Hoje temos 35 modelos no casting, entre negros e brancos, todos da periferia”, conta Lucas Rodrigues. “Nós fazemos seleções locais nas favelas das Zonas Sul, Oeste e Norte e Baixada. Em 2016, fizemos um casting pela internet e, depois, pelas redes sociais. A ideia é trazer pessoas de todas as periferias cariocas.”
Entre as modelos que entraram por meio das seleções locais estão Camila Reis e Natalia Sant’Anna. “Hoje não consigo falar da minha vida como modelo sem falar da Jacaré. É um projeto para a minha vida”, diz Camila. “A maioria das agencias é individualista e aqui somos mais humanos. Apesar de cada um estar numa situação diferente, comunicamos uma única mensagem: a do empoderamento, da resistência e da ajuda mútua”, diz Natalia.
Já Raquel Félix foi descoberta pelo próprio Julio, em 2015. “Estava indo comprar um yakissoba quando ele me parou e falou que eu poderia ser uma modelo”, lembra a moça, de 17 anos, que mora no Jacarezinho desde criança. “Nunca pensei que isso pudesse acontecer porque me achava feia e sofria bullying na escola”, conta. “É muito bom participar desse projeto porque ele beneficia outras pessoas que moram aqui.”
Caio Guimarães, Vitória Cribb e Karina Cabral compartilham as mesmas percepções positivas sobre o projeto. “A Jacaré me ensinou o que era a moda de resistência e gambiarra, e percebi que fiz isso minha vida toda”, conta Caio. “Essa força é o que me interessa”, afirma. “Desde pequena, gostava de estilo, lia revistas, mas meu foco sempre foi as artes visuais”, diz Vitória. “Achava que esse universo não era para mim. Depois que entrei no projeto, vi que é possível mudar e representar muito com a moda.”
Para Karina, foram os vídeos criados para o processo de seleção que a incentivaram. “A primeira coisa que me perguntaram foi de onde eu tinha vindo e qual perrengue tinha passado para chegar lá”, recorda. “Esse é um papo muito periférico. Me senti em casa.” Além de modelo, ela desenvolve conteúdos para as redes sociais da Jacaré. “Pretendemos criar ensaios e editoriais mensais.”
As redes sociais se tornaram ferramentas importantes e também ajudaram a conectar a produtora com o coletivo Papel & Caneta, do publicitário André Chaves. “O coletivo surgiu em 2014, quando viajei para Nova York para conhecer líderes de publicidade que buscavam mudanças na indústria”, explica. “Hoje os projetos acontecem em dez cidades do mundo e sem fins lucrativos.”
Sempre que organiza uma imersão, André cria um post no Facebook para buscar sugestões. “Postei sobre o encontro no Rio e muitos citaram a Jacaré. Conheci a Clariza e, dois meses depois, estávamos reunidos com a equipe da Jacaré e mais 12 profissionais de diferentes repertórios.” Juntos eles realizaram o editorial que você confere aqui, além de um filme, lançado em dezembro.
“O objetivo foi retratar a realidade do modelo da Jacaré com verdade e simplicidade. Não queríamos criar um novo olhar, mas entender a sua própria estética e suas referências para mostrar o potencial deles.”
Para a realização do trabalho, André trouxe profissionais de fora do Brasil, mas também convidou integrantes do coletivo Mooc, de São Paulo, para fazer o styling e a beleza. “O primeiro projeto do Papel & Caneta foi com o Mooc e, quando surgiu a conversa com a Jacaré, André percebeu que era a nossa cara”, conta a figurinista e stylist Suyane Ynaya. “Esse foi o nosso primeiro trabalho dentro de uma agência de modelos e com pessoas tão próximas da gente”, completa. Venho de uma comunidade e para mim foi mágico trabalhar com essas pessoas e ver como a moda funciona dentro desse contexto no Rio, que é diferente de São Paulo”, diz Suyane.
“Fizemos um intensivo e trocamos muitas ideias”, conta a beauty artist Lídia Thays. “Eles falaram sobre o ambiente, a proposta e as problemáticas. O visual foi desenvolvido com base nisso, em conjunto.” O filme chamou a atenção de publicações como a revista Paper e os planos para 2018 são vários, como uma nova seleção de modelos. “Jacarezinho para o mundo e Jacarezinho para o Jacarezinho. É a nossa meta. Quero mostrar que esse lugar existe. Favela também tem moda. Pode digitar no Google”, finaliza Julio César.