Depois de seis tentativas frustradas de engravidar por meio de técnicas de reprodução assistida, a fisioterapeuta Maya*, 36 anos, pensou em desistir da maternidade. Esgotada física e emocionalmente, chegou ao ponto de não querer mais sair de casa. “Não queria ver ninguém nem tinha mais condições emocionais de me submeter a outra fertilização.” Já sem expectativas de conseguir ser mãe naturalmente, Maya se inscreveu no Cadastro Nacional de Adoção e, enquanto cumpria os requisitos exigidos, acabou se deparando com algo que não conhecia e que possibilitou a realização do seu sonho – a adoção de embrião (embrioadoção).
Quando um casal se submete à reprodução assistida, em muitos casos são gerados mais embriões do que serão utilizados durante o tratamento. O excedente, pela legislação, deve ser mantido congelado por pelo menos três anos e, depois, descartado ou fornecido para pesquisa. E são justamente esses embriões que sobram que podem ser adotados por quem não consegue engravidar.
A prática ainda é pouco difundida no Brasil. Em uma das maiores clínicas do país, por exemplo, foram apenas 22 casos em 2017 (no mesmo período, os laboratórios brasileiros tiveram 78 216 embriões congelados). Antes de adotar, a pessoa opta por características físicas do casal doador semelhantes às suas (cor da pele, dos olhos e do cabelo, altura, peso) para que o bebê nasça com traços parecidos, mesmo sem ter o seu DNA. Os embriões doados são transferidos para o útero da mulher que os adotou, e é ela quem vai gerar e dar à luz, como a mãe biológica.
“Eu conhecia a possibilidade de receber óvulos doados, mas não sabia que poderia adotar embriões. Falei com meu marido e ele achou o máximo, mesmo sabendo que não carregariam nossas características genéticas. Queríamos muito ser pais, e essa era uma alternativa que a gente precisava tentar antes de recorrer à adoção padrão”, lembra Maya.
Dois meses depois de procurarem o médico para dizer que estavam dispostos a fazer o procedimento, foram informados de que havia disponíveis quatro embriões com o perfil desejado por eles. “Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Realizei o preparo do endométrio e transferimos dois desses embriões. Engravidei de gêmeos, e hoje tenho dois filhos lindos”, conta Maya, que é mãe de Ricardo* e de Rafael*, que estão com 1 ano e meio.
QUEM PODE ADOTAR
A adoção de um embrião é permitida no Brasil desde a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o tema, em 1992. “Mas há 15, 20 anos não havia técnicas de descongelamento que garantissem a sobrevida dos embriões com qualidade. Adotá-los era, portanto, raro. Isso mudou muito nos últimos dez anos e fez despertar o interesse de casais que procuram ajuda na reprodução assistida e já não possuem mais alternativas usando o próprio material genético”, explica Hitomi Nakagawa, presidente da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM.
A empresária Sarita*, 33 anos, enfrentou três ciclos de fertilização in vitro antes de optar pela adoção de embriões. Decidiu em conjunto com o marido, certos de que não queriam mais o desgaste de tentar gerar um bebê com o material genético deles. “Sou espírita e acredito que esses dois embriões já eram minhas filhas. Poderia ter feito 200 tentativas com meu DNA que não conseguiria engravidar”, diz Sarita, mãe de Bruna* e Bianca*, de 9 meses.
Os especialistas não recomendam que a adoção de embriões seja a primeira opção para quem tem dificuldade em engravidar. Em primeiro lugar, é preciso identificar a causa da infertilidade do casal e passar pelas outras alternativas existentes: inseminação artificial (em que o sêmen do marido é injetado no útero da mulher); fertilização in vitro (quando o óvulo e o espermatozoide são fecundados em laboratório); recepção de óvulos (com mais qualidade, geralmente de mulheres mais novas); ou recepção de sêmen, caso o problema seja do homem.
A adoção de embriões aparece como esperança para gerar um filho quando tanto o homem quanto a mulher possuem problemas de fertilidade ou nunca descobrem o motivo de não engravidar de maneira natural; quando a mulher já está na menopausa ou é mais velha e quer optar por uma produção independente.
Foi assim com a jornalista Carla*, 45 anos. Ela já tem uma filha biológica do primeiro casamento, mas queria ser mãe de outra criança via produção independente. Separada e quase na menopausa, já não produz mais óvulos de qualidade. Depois de amadurecer a ideia por dois anos, decidiu adotar um embrião. Hoje está no processo de preparação do útero para receber dois embriões.
O mesmo aconteceu com a enfermeira Marília*, 39 anos, que adotou três embriões após descobrir que ela e o marido carregavam defeitos genéticos no DNA, capazes de provocar alterações importantes no desenvolvimento do bebê. “Os exames mostraram que as chances de engravidarmos naturalmente era rara. E mais raro ainda seria ter um bebê saudável.”
O casal começou o processo de tentar engravidar usando o próprio material genético e selecionando apenas os embriões saudáveis. Não conseguiu. Depois de pesquisar muito sobre o tema, optou pela adoção embrionária. Agora são pais de Gabriela* e Isabela*, gêmeas de 1 ano e 3 meses.
DECISÃO DE DOAR
Os embriões só são colocados para adoção com a concordância dos pais biológicos. A administradora Flávia Monik de Souza Nicolau, 42 anos, doou seus dois embriões excedentes. “Naqueles embriões havia vida, não queríamos jogar fora. Doamos de coração escancarado, com todo amor”, diz ela, que se submeteu a oito fertilizações até conseguir engravidar de gêmeos. “Fiz uma oração no momento em que estávamos assinando o documento da doação pedindo que eles fizessem uma família feliz.”
Flávia relata não se preocupar com a possibilidade de ter dois filhos biológicos circulando por aí. Afirma que, se as crianças um dia quisessem conhecê-la, elas os receberia. “E diria para amarem muito os pais adotivos, que abriram mão do DNA deles em nome do amor.” Já o advogado Márcio Maia Palmar, 39 anos, marido de Flávia, diz não saber como reagiria caso isso acontecesse.
Apesar de não haver legislação específica sobre adoção de embriões, o sigilo dos doadores é garantido por resolução do CFM. Doadores e receptores devem assinar um termo de consentimento. Apesar do documento, o tema é controverso porque o artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 anos”.
De acordo com Silmara Chinellato, professora titular de direito civil da Faculdade de Direito da USP, o anonimato é ilegal e contraria o direito ao conhecimento das origens e da identidade genética. “É um direito garantido pelo ECA, embora o exercício desse direito não seja fundamento para desconstituir a paternidade ou a maternidade estabelecida em favor de quem adotou os embriões. Ela explica que é possível requerer judicialmente o reconhecimento da paternidade biológica, caso a pessoa adotada queira. A recente e polêmica decisão do STF permite que conste o nome de todos os pais no registro de nascimento.
Na avaliação de Silmara, é preciso que o Brasil tenha uma legislação sobre reprodução assistida para garantir maior segurança jurídica e menos incertezas aos envolvidos. Recomenda que o ato de adoção de embriões deva ser feito por escritura pública.
Já para a advogada Thaís Ribacionka, mestre em bioética, apesar do artigo do ECA, a manutenção da não identificação na adoção, tanto na padrão quanto na de embriões, é consolidada na Justiça. “A questão do anonimato é muito forte e muito bem estabelecida no Brasil.”
CONTAR OU NÃO CONTAR
A médica Thaís Domingues, da clínica de reprodução Huntington, explica que todo casal que vai se submeter a algum tipo de adoção (seja do embrião ou de uma criança já nascida) passa por um processo de aceitação. Segundo ela, no caso da embrionária, é o homem quem costuma ser mais resistente. “A mulher, mesmo não usando o óvulo dela, vai carregar esse embrião por nove meses. Depois que começar a senti-lo crescer, se mexer, nem lembrará que não tem material genético dela. Ela será a mãe desse bebê, sem dúvida, mas o homem pode não se sentir o pai.”
Por causa desse tipo de problema, é recomendado que todo casal adotante passe por acompanhamento psicológico.
Foi justamente a falta desse apoio psicológico que até hoje faz a dona de casa Fabiane*, 41 anos, olhar para seu filho, Fernando*, 4 anos, e pensar que ele não se parece nem com ela nem com o marido. Fernando é fruto de uma adoção de embrião feita depois que Fabiane descobriu ter uma alteração cromossômica. “O amor que eu sinto por ele é incrível, é meu filho, nada muda. Mas senti falta de um preparo psicológico, não vou mentir. Ainda me cobro muito por ele não carregar nosso DNA.”
Diferentemente do que ocorre na adoção de uma criança, na de embrião há um período de gravidez normal. Por isso, outro ponto que costuma vir à tona é contar ou não para a família e, futuramente, para o filho sobre o procedimento. Questões como “E se quiser conhecer os pais biológicos?” ou “E se ela tiver uma doença hereditária e precisar de material genético?” rondam quem adota.
A maioria dos pais adotivos de embriões opta por não contar nem mesmo aos familiares sobre a adoção e decide manter o segredo pelo resto da vida com o objetivo de preservar as crianças de possíveis atos de preconceito.
“A gente não contou para ninguém. Não achamos justo que outras pessoas saibam da história dos meus filhos antes deles mesmos”, diz a fisioterapeuta Maya. Sarita compartilha do mesmo sentimento e ressalta que não cabe a nenhuma pessoa – além dela e do marido – saber de um detalhe tão importante da vida da família deles.
“Pode parecer que estou mantendo um segredo, mas não enxergo dessa maneira. Eu apenas estou evitando criar confusão na cabeça das minhas filhas.” Carla e Marília afirmam que pretendem contar a verdade aos filhos assim que eles tiverem condições de entender o que aconteceu e como é o procedimento do qual fizeram parte. “Uma mentira gera outra mentira e não quero isso para meu filho/filha no futuro. Espero que daqui a algum tempo as pessoas tenham a cabeça um pouco mais aberta, já que isso não é o fim do mundo. É uma adoção como qualquer outra”, diz Carla.
Marília relata que pretende revelar às filhas sobre o processo de adoção porque a medicina evoluiu muito. “Nós congelamos o sangue do cordão por precaução, para lidar com possíveis questões de saúde no futuro.”
Para o médico José Geraldo Alves Caldeira, da Clínica de Reprodução do Hospital Santa Joana, em São Paulo, a adoção de embriões é uma tendência que está se tornando mais comum. “As mulheres estão optando por ser mães muito mais tarde, e essa é uma alternativa viável para esses casos.” Um dos empecilhos ainda é o valor cobrado, geralmente acima dos 10 mil reais.
O embrião é uma doação, mas há custos, por exemplo, para implantá-lo. No Sistema Único de Saúde (SUS), há 11 hospitais que fazem reprodução assistida, mas não embrioadoção.
Para quem quer criar filhos e não consegue engravidar naturalmente, o importante é buscar ajuda especializada para entender qual a melhor alternativa a ser tentada. A adoção de embriões é mais uma esperança da ciência.
MAIS CASOS
Números do 11º relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões, divulgados em maio, mostram que, desde a aprovação da Lei de Biossegurança, em 2015, apenas 1 363 embriões foram doados para pesquisa clínica com células-tronco embrionárias no país. O auge foi em 2013, quando 366 embriões foram entregues.
O relatório aponta ainda uma tendência ao aumento nos processos de reprodução assistida: entre 2012 e 2017, houve um crescimento de 150% no número de embriões congelados, saltando de 31 181 unidades para 78 216.
Segundo o médico Edson Borges, da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, o Brasil faz hoje cerca de 140 ciclos de fertilização in vitro por milhão de habitantes, enquanto a França e a Inglaterra realizam cerca de 2 mil ciclos a cada milhão. “O Brasil ainda faz muito pouco em termos de acesso. Países escandinavos chegam a 3 mil ciclos por milhão de pessoas.”
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária é a responsável por fiscalizar asclínicas de reprodução assistida no Brasil para garantir a qualidade dos procedimentos nos quesitos técnicos, como condições de congelamento. Apesar de controlar o número de embriões descartados ou doados para pesquisas, a agência não sabe informar quantos foram para adoção. Esse controle é feito apenas pelas clínicas. CLAUDIA entrou em contato com algumas para mostrar o aumento.
A Huntington Medicina Reprodutiva, por exemplo, uma das maiores do Brasil, soma 85 casos de embriões adotados entre 2012 e 2017. No ano passado, foram 22 casos e, apenas no primeiro semestre de 2018, a clínica já contabiliza outros 22 procedimentos.
(m de mulher)